REDAÇÃO
CAPÍTULO xiv
CRÔNICA
Aldry
suzuki amo vocês!!
O cotidiano é feito, em sua maior parte, de
banalidades, mesquinharias e irritações, esteja você em Paris ou em
Barcelona. Observá-las, chamar atenção para elas por meio de linguagem
escrita, transformando-as em breves momentos poéticos, é tarefa que requer
distanciamento, capacidade de abstração, certa maturidade vivencial –
trabalho de cronista, enfim, que resulta, como definem os teóricos, entre o
conto e a poesia.
(Bernardo Ajzenberg)
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1.
A origem da crônica
Já nas mais antigas
civilizações conhecidas (Egito, Suméria, Assíria) aparece uma curiosa figura: o
escriba.
Sua função? Escrever, é
evidente. Escrever o que e para quem?
Estava a serviço do rei,
faraó, ou pessoa de grande destaque na hierarquia dirigente.
Fazia o registro de
operações de compra e venda, uma contabilidade rudimentar, preparava dados
biográficos de nobres e aristocratas, mas, principalmente, acompanhava seus
chefes nas campanhas guerreiras, fazendo relatos de cada etapa, vitória,
derrota ou conquista.
Tais registros seriam lidos,
ao retorno das andanças bélicas, pelos sacerdotes, para encantamento da
população que mandara seus filhos ao sacrifício pela glória do supremo
dirigente.
O que se pode deduzir de
tais registros é que não passavam de uma espécie de “diário de campanha”, cuja
fidelidade aos fatos era bastante duvidosa, já que se destinavam a elogiar e
enaltecer o chefe.
Essa tendência de muitos
escritores se mantém até os dias atuais, refletindo o que diz esta antiga
máxima: “aos reis, como às crianças, é preciso enganá-los, para seu próprio
bem”.
Sintomaticamente, José de
Alencar colocou esse provérbio na introdução de seu Livro Crônica dos Tempos Coloniais,
debaixo de um subtítulo: Advertência.
Aí está, com todos os seus
vícios de origem, a primeira manifestação de um gênero que, depois, derivou
para a crônica, ou para o diário e até para a autobiografia.
O que mais se aproxima,
hoje, da atividade dos antigos escribas é, certamente, o noticiarista,
encarregado de relatar os fatos do
dia-a-dia, para jornais, rádios e televisões, sem acrescentar-lhes comentários.
O CRONISTA DE SI MESMO
Outro tipo de cronista é o
que dispensa o escriba e passa a relatar seus próprios feitos gloriosos.
Exemplo típico foi Júlio César que, no Livro De
Bello Galico (sobre a Guerra nas Gálias), contou sua saga
para a posteridade.
Foi bastante limitado, tanto
assim que relatos desse tipo assinados por grandes personalidades históricas,
como o Marechal Montgomery, o General Von Rommell e outros são frequentes.
Se, por um lado, isso pode
levar a distorções quanto à veracidade dos fatos, por outro, o receio de
parecer ridículo, exagerado ou até mentiroso deve ter contido, em muitos desses
relatos autobiográficos, os impulsos de auto-exaltação.
Pelo menos uma
constatação tem sido feita: os historiadores não encontraram muitos fatos
contestar em tais crônicas de campanha.
O cronista a distância
O cronista pode também
manter-se à distância dos fatos. É bem antiga essa forma de relatar. Já a
encontramos em Homero que, com certeza, não esteve presente nos episódios que
relatou. Mas sua forma de dizê-lo, embora em versos, é típica da crônica:
Fomos aí ter a
magnífico porto, cercado ele todo de pedras íngremes, que naus se erguem por
ambos os lados.
Dois promontórios, em
frente postados um ao outro, se encontram logo na entrada, salientes...
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A linguagem é a mesma do
cronista “testemunha ocular da História”, mas, evidentemente, muito de
imaginação e de visão poética entrou na composição da Odisseia e da Ilíada.
Porém, um fato bem posterior
e até recente comprova que, mesmo a distância, Homero procurava a fidelidade
histórica. Tanto assim, que foi por meio de sua obra que se localizou o sítio
onde outrora existiu a cidade de Troia.
Cronista a distância também
foi Fernão Lopes, o mais importante dos relatores portugueses da passagem da
época medieval para a renascentista, pois ele escreveu e recompôs, com base em
documentos pesquisados, a vida e os feitos de diversos reis de Portugal.
O fato de fazerem crônicas a
distância aproxima-os muito do historiador, pois o fato histórico e sua na[alise
se mantêm, perpetuando seus protagonistas.
É ainda José de Alencar quem
nos conta como concebeu o livro Guerra
dos Mascates:
Tornando ao gabinete,
depois de uma manhã perdida, deu-me a curiosidade de examinar as antigualhas
do embrulho (que lá fora deixado por um sacristão...) antes de manda-las para
o lixo.(...) Era o manuscrito de uma crônica inédita sobre a Guerra dos
Mascotes.
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E assim nasceu o livro de
Alencar, a partir de antigos alfarrábios deixados por algum cronista anônimo...
A crônica moderna
Na verdade, a crônica que
chamaremos de moderna não é tão moderna e talvez não seja tão crônica...
Por exemplo: a carta de Pero
Vaz de Caminhada ao rei de Portugal, relatando a descoberta do Brasil, não é
uma carta.
É uma crônica, no melhor dos
estilos de “testemunha ocular da História”. Respeitou todas as técnicas da
cronologia, com datas e até horários, descrevendo passo a passo os
acontecimentos. Por outro lado, o autor faz comentários, aconselha, sugere,
critica, tudo ao mesmo tempo.
Ora, essa miscelânea,
quer de assuntos, quer de posições
assumidas pelo cronista, é bem típica de uma vertente da crônica atual.
Ela
começa com pequenos tópicos, baseados em acontecimentos do dia e analisados ora
jocosa, ora humoristicamente.
Quase sempre mordaz, de vez em quando é poética,
intimista, porque vai à intimidade do autor, geralmente personalidade famosa do
mundo das letras, sobre quem o leitor quer sempre saber mais alguma coisa, de
preferência íntima, particular, secreta.
Um exemplo bem marcante é a crônica “
Meu filho”, em que Vargas Llosa revela pormenores de sua vida familiar, de
roldão com sua atividade mundana como integrante de júris cinematográficos.
Cronista modernos
No Brasil, tal tipo de
miscelânea teve grandes figuras: Viriato Correia, Humberto de Campos e seu
conselheiro XX. Álvaro Moreyra, João do Rio e, bem mais modernamente, Rubem
Braga, Fernando Sabino, Rachel de Queiroz, Paulo Francis, Carlos Drummond de
Andrade, Otto Lara Resende, Carlos Drummond de Andrade, Otto Lara Resende,
Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro, Luís Fernando Veríssimo.
Mas há também tipos de
crônica que se especializaram: a crônica política, como a que faz Carlos Heitor
Cony e Alexandre Garcia; a esportiva, como a que fazia João Saldanha; a
humorística, de Luís Fernando Veríssimo; a social, de Jacinto de Thormes; a
Gastronõmica, de Sylvio Lancellotti; a econômica, de Joelmir Betting; e tantas
outras.
A crônica, hoje, é
abrangente, envolvente: abarca memória e profecia, presente e passado,
literatura e polêmica, exaltação e condenação. Está livre dos senhores e mecenas, cada vez mais
personalizada, refletindo muito mais o subjetivismo do autor do que o
objetivismo dos fatos. E o cronista transforma-se em testemunha ocular de si
mesmo.
(Texto
do professor Josué Fávaro)
2-
tipos de crônica
Como
classificar uma modalidade tão maleável como a crônica? O que os textos
geralmente têm em comum é a brevidade, a abordagem reflexiva e subjetiva do
autor.
Apenas
a crônica narrativa pode não apresentar um posicionamento impressionista do
narrador, atendo-se tão-somente aos fatos, à história criada.
Por
isso, na classificação que ora apresentamos, as crônicas foram dividas
considerando-se o procedimento textual predominante – o comentário, a narração,
o lirismos e outros - , o que não elimina a mescla de procedimentos nem a
impressão subjetiva exterioriza pelo autor.
3-
crônica descritiva
Quando
uma crônica explora a caracterização de seres animados num espaço, viva como
uma pintura, precisa como uma fotografia ou dinâmica como um filme, temos uma
crônica descritiva.
A captação
impressionista, particularizada e conotativa dos elementos define a descrição
subjetiva; a captação referencial, impessoal e denotativa define a descrição
objetiva.
O descritivismo é sempre veículo é sempre veículo para reflexões numa
crônica centrada na descrição.
O
mato
Veio o
vento frio, e depois o temporal noturno, e depois da lenta chuva que passou
toda a manhã caindo e ainda voltou algumas vezes durante o dia, a cidade
entardeceu em brumas. Então o homem esqueceu o trabalho e as promissórias, esqueceu
a condução e o telefone e o asfalto, e saiu andando lentamente por aquele
morro coberto de um mato viçoso, perto de sua casa. O capim cheio de água
molhava seu sapato e as pernas da calça; o mato escurecia sem vagalumes nem
grilos.
Pôs a mão
no tronco de uma árvore pequena, sacudiu um pouco, e recebeu nos cabelos e na
cara as gotas de água como se fosse uma benção. Ali perto mesmo a cidade
murmurava, estalava com seus ruídos vespertinos, ranger de bondes, buzinar
impaciente de carros, vozes indistintas; mas ele via apenas algumas árvores,
um canto de mato, uma pedra escura. Ali perto, dentro de uma casa fechada, um
telefone batia, silenciava , batia outra vez, interminável, paciente,
melancólico. Alguém com certeza já sem esperança, insistia em querer falar
com alguém.
Por um
instante, o homem voltou seu pensamento para a cidade e sua vida. Aquele
telefone tocando em vão era um dos milhões de atos falhados da vida urbana.
Pensou no desgaste nervoso dessa vida, nos desencontros, nas incertezas, no
jogo de ambições e vaidades, na procura de amor e de importância, na caça ao
dinheiro e aos prazeres.
Ainda bem
que de todas as grandes cidades do mundo o Rio é a única a permitir a evasão
fácil para o mar e a floresta. Ele estava ali num desses limites entre a
cidade dos homens e a natureza pura; ainda pensava em seus problemas urbanos –
mas um cameleão correu de súbito, um passarinho piou triste em algum ramo, e
o homem ficou atento àquela humilde vida animal e também à vida silenciosa e
úmida das árvores, e à pedra escura, com sua pele de musgo e seu misterioso
coração mineral.
E pouco a
pouco ele foi sentindo uma paz naquele começo de escuridão, sentiu vontade de
deitar e dormir entre a erva úmida, de se tornar um confuso ser vegetal, num
grande sossego, fato de terra e de água; ficaria verde, emitiria raízes e
folhas, seu tronco seria um tronco escuro, grosso, seus ramos formariam copa
densa, e ele seria, sem angústia nem amor, sem desejo nem tristeza, forte,
quieto, imóvel, feliz.
(Rubem Braga)
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Essa
crônica descritiva constrói-se através da caraterização de seres e objetos ,
num cenário que vai da cidade à natureza.
O texto apresenta o efeito estético
do universo urbano definido sobretudo pela enumeração da cidade, com recurso de
assíndetos e polissíndetos reproduzindo os ritmos da cidade grande e da natureza.
A linguagem do autor é impressionista: sua visão subjetiva dos elementos
marca-se por inesperadas sinestesias (“telefone
impaciente e melancólico”, “vida silenciosa e úmida das árvores”, “pedra escura
com seu misterioso coração animal”).
4-
crônica narrativa
Menor
que um conto e maior que uma piada, a crônica narrativa conta um episódio
cativante cuja trama é leve e digestiva, envolvendo muita ação, poucas
personagens e uma conclusão inusitada.
O
humor anedótico ou a crítica mordaz são os traços mais comuns da crônica
narrativa. Geralmente, não há intromissão do narrador (digressões, comentários,
apontamentos dissertativos).
Choro,
vela e cachaça
Enterro
de pobre sempre tem cachaça. É para ajudar a velar o falecido. Sabem como é;
pobre só tem amigo pobre e, portanto, é preciso haver incentivo qualquer para
a turma subnutrida poder aguentar a noite inteira com o ar compungido que o
extinto merece.
Enfim, a
cachacinha é inevitável, seja nua favela carioca, seja num bairro pobre da
cidade do interior. Foi o que aconteceu agora em Ubá (MG) , terra do grande
Ari Barroso.
Morreu lá
um tal de Sô Nicolino, numa indigência que eu vou te contar. Segundo o
telegrama vindo de Ubá, alguns amigos de Sô
Nicolino compraram um caixão e algumas garrafas de cangibrina, levando
tudo para o velório. Passaram a noite velando o morto e entortando a cachaça.
De manhã, na hora do enterro, fecharam o caixão e foram para o cemitério, num
cortejo meio ziguezagueando e num compasso mais de rancho que de féretro. Mas
– bem ou mal – lá chegaram, lá abriram a cova e lá enterraram o caixão.
Depois
voltaram até a casa do morto, na esperança de ter sobrado alguma cachacinha
no fundo da garrafa. Levaram, então a maior espinafração da vizinha do
pranteado Sô Nicolino. É que os bêbados fecharam o caixão, foram lá enterrar,
mas esqueceram o falecido em cima da mesa.
(Stanislaw Ponte Preta)
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A
crônica de Stanislaw Ponte Preta é narrativa, pois conta uma breve história em
tom humorístico , numa linguagem cotidiana, coloquial e intimista, com sabor
tipicamente brasileiro.
5-
crônica narrativo-descritiva
Quando
um texto alterna momentos narrativos com flagrantes descritivos, temos uma
abordagem narrativo-descritiva.
Dessa forma, as ações detêm-se para que o
leitor visualize, mentalmente, as imagens que a sensibilidade do autor registra
com palavras. O que se observa no texto assim qualificado é a predominância da
sucessão de ações sobre as inserções descritivas.
Observe
essas características na brevidade da crônica abaixo.
Brinquedos
Ora, uma
noite, ocorreu a notícia de que o bazar se incendiara. E foi uma espécie de
festa fantástica. O fogo ia muito alto, o céu ficava todo rubro, voavam chispas e labaredas pelo bairro todo. As crianças
queriam ver o incêndio de perto, não se contentavam com portas e janelas,
fugiam para a rua, onde brilhavam bombeiros entre jorros, d’água. A eles não
interessava nada, peças de pano, cetins, cretones, cobertores, que os adultos
lamentavam. Sofriam pelos cavalinhos e bonecas, os trens e os palhaços,
fechados, sufocados em suas grandes caixas.
Brinquedos
que jamais teriam possuído, sonho apenas da infância, amor platônico.
O
incêndio, porém, levou tudo. O bazar ficou sendo um famoso galpão de cinzas.
Felizmente,
ninguém tinha morrido –diziam em redor. Como não tinha morrido ninguém? –
pensavam as crianças. Tinha morrido um mundo, e, dentro dele, os olhos amorosos
das crianças, ali deixados.
E começávamos
a pressentir que viriam outros incêndios. Em outras cidades. De outros
brinquedos. Até que um dia também desaparecêssemos, sem socorro, nós, brinquedos
que somos, talvez, de anjos distantes.
(Cecília Meireles)
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Nessa
crônica de Cecília Meireles, alternam-se a narração – “ora, uma noite, correu a notícia de que o
bazar se incendiara” - , a descrição – “O fogo ia muito alto, o céu ficava todo
rubro, voavam chispas e labaredas(...)” – e a reflexão – “até que um dia também desaparecêssemos, sem
socorro, nós , brinquedos que somos (...)”.
O desenvolvimento
narrativo-descritivo configura-se, pois como um veículo para a reflexão.
Submetido à linguagem poética, nesse hibridismo textual, o patético torna-se
lírico.
Nudez
A filha
tentava convencer a mãe a ir à praia e a velha resistia: estava muito idosa e
gorda para vestir maiô.
- Mas,
mamãe, eu já vi de maiô, na praia muitas senhoras mais velhas e mais gordas
do que você!!
E a velha
suavemente :
- Eu também
já vi. Por isso é que não vou.
Para mim,
o critério dessa velha é o critério certo em matéria de nudez. O que é feio
se esconde. Um moço, uma moça, no esplendor da juventude, seus belos corpos
podem se mostrar praticamente desnudos, de biquíni, de sunga, de cavado:
assim tão enxutos, rijos, tostados, chagam a ser castos. Predomina a
impressão de beleza e saúde sobre a sugestão erótica. E, depois, sabe-se que
aquela floração é tão transitória! Deixem que os jovens fruam o instante passageiro,
que usem a mostrem os corpos na sua hora de flor, antes que chegue a hora da
semente e do declínio.
Afirmam os
nudistas, com perfeita lógica, que todo o mundo andando nu, a nudez acostuma
e deixa de escandalizar: sim, acredito que num campo de nudistas se
acabe vivendo com a mesma naturalidade
que numa sala de família. Aliás, quem convive com índios sabe disso: o hábito
torna a nudez invisível. O que eu tenho contra os nudistas é a exibição
obrigatória da feiura humana, o seu despojamento total, a miséria fisiológica
sem um véu que a disfarce. O ridículo, a falta de dignidade de todo o mundo
nu.
Certa amiga minha, que,
numa praia da Noruega, de repente se viu dentro de um grande bando de gente
nua, diz que o seu choque primeiro não foi o da vergonha, foi o do grotesco.
As pelancas , os babados, os rins flácidos, os joelhos grossos. A velhota
magra com sus ossinhos de frango assado, a quarentona de busto murchinho, o
senhor ruivo de barriga redonda, braços e canelas tão finos e peludos que, se
tivesse mais duas pernas, seria igual a uma aranha . A matrona obesa e o seu
esposo idem e o pra de jovens rechonchudos, de mãos dadas como dois
porquinhos enamorados. A seca donzela machona de coxas de cavalete, a falsa
Vênus de cintura grossa, com o falso atleta de torso enorme e pernas curtas.
Da tribo toda, praticamente só se salvavam os adolescentes e as crianças.
A humanidade nua e feia, não há dúvida. E por
isso mesmo a gente se oculta debaixo da roupa. Talvez mais do que para a defender
do frio, a roupa se inventou para encobrir o corpo e lhe dar dignidade. O que
é bonito se mostra, o que é feio se esconde, é a lei de todas as culturas
humanas. Nada mais triste do que a deterioração do que foi belo. Ninguém usa no
dedo um anel sem a pedra. Ninguém bota na sala um ramo de flores murchas.
(Rachel de Queiroz)
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Alternam-se
nessa crônica diferentes processos textuais: a narração (como o recurso do
discurso direto), a reflexão (através de digressões que formam um comentário sobre
o assunto) e a descrição (uma captação fotográfica da situação exposta).
Enquanto a subjetividade opinativa assinala os comentários reflexivos, o humor
pleno de sinestesias marcas a irreverência descritiva.
6-
crônica lírica
Quando
a nostalgia, a saudade e a emoção predominam, tentando traduzir poeticamente a
linguagem dos sentimentos, a crônica é lírica.
Apelo
Amanhã
faz um mês que a Senhora está longe de casa. Primeiros dias, para dizer a
verdade, não senti falta , bom chegar tarde, esquecido na conversa de
esquina. Não foi ausência por uma semana: o batom ainda no lenço, o prato na
mesa por engano, a imagem de relance no espelho.
Com os
dias, Senhora , o leite pela primeira vez coalhou. A notícia de sua perda
veio aos poucos: a pilha de jornais ali no chão, ninguém os guardou debaixo
da escada.
Toda a
casa era um corredor deserto, e até o canário ficou mudo.
Para não
dar parte de fraco, ah, Senhora, fui beber com os amigos.
Uma hora
da noite eles se iam e eu ficava só, sem o perdão de sua presença a todas as
aflições do dia, com a última luz na varanda.
E comecei
a sentir falta das pequenas brigas por causa do tempero na salada – o meu
jeito de querer bem. Acaso é saudade Senhora? As suas violetas, na janela,
não lhes poupei água e elas murcham. Não tenho botão na camisa, calço a meia
furada. Que fim levou o saca-rolhas? Nenhum de nós sabe, sem a Senhora,
conversar com os outros: bocas raivosas mastigando. Venha para casa, Senhora
por favor.
(Dalton Trevisan)
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No texto
da crônica, a ausente figura feminina
presentifica-se por meio do impressionismo do , autor. No lirismo nostálgico,
está o predomínio das funções poética e emotiva da linguagem. A função conativa ( o vocativo “Senhora “)
reitera o título “apelo”,
sugere o destinatário, mas não o identifica.
O texto ganha expressividade nessa
indefinida mulher: o leitor é instalado a supor a identidade da senhora ausente
com a mesma intensidade com que supõe o motivo da ausência, e, dessa forma,
identifica-se com as emoções do narrador.
7-
crônica reflexiva
Se a
interioridade do autor se projeta sobra a realidade que o cerca,
interpretando-a e registrando-a através de conjecturas, inferências e
associações de ideias, temos a crônica reflexiva.
Vitória
nossa
O que
temos feito de nós e a isso considerado vitória nossa de cada dia?
Não temos
amado, acima de todas as coisas. Não temos aceito o que não se entende porque
não queremos ser tolos. Temos amontoado coisas e seguranças por não nos
termos, nem aos outros. Não temos nenhuma alegria que tenha sido catalogada. Temos
construído catedrais e ficado do lado de fora, pois as catedrais que nós
mesmos construímos tememos que sejam armadilhas. Não nos temos entregue a nós mesmo, pois isso seria o começo
de uma vida larga e talvez sem
consolo. Temos evitado cair de joelhos diante do primeiro que por amor diga:
teu medo. Temos organizado associações de pavor sorridente, onde se serve a
bebida com
Soda.
Temos procurado salvar-nos, mas sem usar a palavra salvação para não nos
envergonharmos de ser inocentes. Não temos usado a palavra amor para não
termos de reconhecer sua contextura de amor e de ódio. Temos mantido em
segredo a nossa morte. Temos feito arte por não sabermos como é a outra
coisa. Temos disfarçado com amor nossa indiferença, disfarçado nossa indiferença com a angústia,
disfarçando com o pequeno medo o grande medo maior. Não temos adorado, por
termos a sensata mesquinhez de nos
lembrarmos a tempo dos falsos deuses. Não temos sido ingênuos para não rirmos
de nós mesmos e para que no fim do dia possamos dizer “pelo menos não fui
tolo”, e assim não chorarmos antes de apagar a luz. Temos tido certeza de que
eu também e vocês todos também, e por isso todos sem saber se amam. Temos
sorrido em público do que não sorrimos quando ficamos sozinhos. Temos chamado
de fraqueza a tudo isso temos considerado a vitória nossa de cada dia ...
(Clarice Lispector)
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Introspecção,
reflexão e subjetividade são marcas discursivas de Clarice Lispector.
Seu texto
é uma revelação dos questionamentos, anseios e comedimentos do homem. Sua
linguagem rastreia as regiões abissais do inconsciente, onde estão os
arquétipos do comportamento humano, as fobias e desejos, trazidos á tona por
uma visão metafórica que traduz estados de alma.
8-
crônica metalinguística
Na crônica
metalinguística, o autor volta-se para o ato de escrever, sob a forma de uma reflexão despretensiosa, de uma
retrospectiva das primeiras experiências com as letras, de uma análise da
palavra.
Crônica tem
esta vantagem: não obriga ao paletó-e-gravata de editorialista, forçado a
definir uma posição correta diante dos grandes problemas; não exige de quem o
faz o nervosismos saltitante do repórter, responsável pela apuração do fato na hora mesma em que ele acontece;
dispensa a especialização suada em economia, finanças, política nacional e
internacional, esporte, religião e o mais que imaginar se possa. Sei bem que
existem o cronista político, o esportivo, o religioso, o econômico etc., mas
a crônica de que estou falando é aquela que não precisa entender de nada ao
falar de tudo. Não se exige do cronista geral a informação ou o comentário
precisos que cobramos dos outros. O que lhe pedimos é uma espécie de loucura
mansa, que desenvolva determinado ponto de vista não ortodoxo e não trivial,
e desperte em nós a inclinação para o jogo da fantasia, o absurdo e a
vadiação de espírito. Claro que ele deve ser um cara confiável, ainda na
divagação. Não se compreende, ou não compreendo, cronista faccioso, que sirva
a interesse pessoal ou de grupo, porque a crônica é território livre da
imaginação, empenhada em circular entre os acontecimentos do dia, sem
procurar influir neles. Fazer mais do que isto seria pretensão descabida de
sua parte.
Ele sabe que seu prazo de atuação é limitado: minutos no café da manhã ou à espera do coletivo.
(Carlos Drummond de Andrade)
|
Neste
texto, identificamos a função metalinguística na interpretação do autor sobre o
conceito de crônica e sobre os alcances da imaginação de um cronista ao
cercar-se de episódios prosaicos.
A
fluidez de sua linguagem leva a uma precisa definição de crônica, resultando
num texto leve e cativante, típico de
uma crônica sem pretensões jornalísticas ou literárias.
9-
Crônica- comentário
Cercando-se
de impressões críticas, com ironia, sarcasmos
ou humor, a crônica-comentário resulta num texto cujo ponto forte são as
interpretações do autor sobre um determinado assunto, numa visão quase jornalística.
De
como não ler um poema
Há tempos
me perguntaram umas menininhas, numa dessas pesquisas, quantos diminutivos eu
empregara no meu livro A rua dos Cataventos. Espantadíssimo, disse-lhes que não sabia. Nem tentaria saber, porque poderiam
escapar-me alguns na contagem. Que essas estatísticas, aliás , só poderiam
ser feitas eficientemente com o auxílio de robôs.(1) Não sei se as menininhas sabiam ao certo o que era
um robô. Mas a professora delas, que mandara fazer as perguntas devia ser um
deles.
E mal
sabia eu, então, que estava dando um testemunho sobre o estruturalismo – o qual
só depois vim a conhecer pelos seus produtos em jornais e revistas. Mas
continuo achando que um poema(um verdadeiro poema, quero dizer), sendo algo dramaticamente emocional, não
deveria ser entregue à consideração de robôs, que, como todos sabem, são
inumanos.(1) Um robô, quando muito poderá fazer uma meticulosa autópsia –
caso fosse possível autopsiar uma coisa tão viva como é a poesia.
Em todo
caso, os estruturalistas não deixam de ter o seu quê de humano...
Nas suas pacientes, afanosas, exaustivas
furungações, são exatamente como certas crianças que acabam estripando um
boneco para ver onde está a
musiquinha.
(Mário Quintana)
|
O
sarcasmo e a ironia revestem o texto de Mário Quintana. A opinião sarcástica
fica por conta das apreciações irreverentes a irônias e até pelo uso pejorativo
do diminutivo “menininhas”.
A
visão crítica do poeta estende-se a considerações igualmente ferinas sobre as
propostas estruturalistas.
(1)Irreverência e ironia.
Bom
estudo meus amores, com carinho de sua eterna Prof Dr Master Reikiana Aldry Suzuki
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