domingo, 4 de setembro de 2016

REDAÇÃO XI - NARRAÇÃO - ALDRY SUZUKI AMO VOCÊS!!








REDAÇÃO  CAPÍTULO XI

NARRAÇÃO


ALDRY SUZUKI  AMO VOCÊS!!



O ato de escrever é prazer, diversão. É a sensação de poder, de domínio. Criar gente, fabricar fantasias, inventar cidaes, dar vida e dar morte, criar um terremoto ou furação, fazer o que eu quiser. Escrever é um jogo, brincadeira. Conseguir segurar, prender uma pessoa, mantê-la atrelada a si (é o leitor diante do livro: sua sensação divina).

                  (Ignácio de Loyola Brandão)






1.INTRODUÇÃO






Dominando a palavra, o homem tentou perpetuar seus mitos, sua visão mágica do mundo, suas conquistas, sua história. 

Nas narrativas, nas lendas, nas epopeias e canções, alegorizou seus ritos, temores e feitos. Seus registros venceram o tempo nos traçados de múltiplos códigos, como a escrita cuneiforme, os hieróglifos e a arte primitiva.

Assim, as pinturas rupestres da caverna de Altamira, as escrituras sagradas dos vedas, as epopeias gregas, as cantigas provençais, os contos de fadas contam cada qual a fantasia, a mitologia, a história de seu povo. 

No texto oral escrito, ouvir e ler histórias é uma atividade antropológico-social que distingue culturalmente o homem.

Desde que descobriu o poder encantatório da palavra, o ser humano deu curso ao pensamento mítico, deu permanência às crenças, às divindades, à criação do mundo, ao cosmos, envolvendo-os em alegorias. 

Nos séculos XVI e XVII, na literatura oral de raízes populares, predominavam os contos folclóricos, os ditos e provérbios. 

Na segunda metade do século XVII, propagou-se a ação sistemática da Igreja para cristianizar a cultura popular, mas o patrimônio imaginário dos contos, sobretudo os de fadas, resistiu à luta de forças da contrarreforma que dominou o cenário religioso e escolar daquele século.


Com a evolução da História, a interpretação dos acontecimentos foi distanciando-se das alegorias, da imaginação; entre o mito e as formas derivadas da narrativa ( o romance, a novela, o conto, a crônica), os heróis divinos tornam-se personagens humanas. 

Os fatos históricos de épocas primordiais cedem lugar aos episódios cotidianos contemporâneos. Hoje, afirma Nelly Novaes Coelho (O conto de fadas) que “ uma das características mais significativas do nosso século é a coexistência, pacífica ou não, entre a inteligência racional/cientificista, altamente desenvolvida, e o pensamento mágico que dinamiza o imaginário”.

Nas narrativas orais, nas fábulas, nos contos de fadas ou nos romances contemporâneos, é a imaginação que faz com que apreciemos os encantamentos de Branca de Neve como apreciamos o fascínio de Cem Anos de Solidão.

Foi pensando no imaginário, na magia e na fantasia que foram selecionados os textos  narrativos desta coletânea. Histórias que , sem deixar à margem o padrão culto da língua, encantam pela simplicidade, pelo humor, pela sátira, pela inovação, pela singularidade, enfim pelo aproveitamento exemplar das virtualidades da língua.






2. Definição


Narrar é contar uma história real ou fictícia. O fato narrado apresenta uma sequência de ações envolvendo personagens em determinado espaço e tempo.

São exemplos de narrativas a novela, o romance, o conto e também uma crônica, uma notícia de jornal, uma piada, um poema, uma letra de música, uma história em quadrinhos, desde que apresentem uma sucessão de acontecimentos , de fatos.

Situações narrativas podem aparecer até mesmo numa única frase. Exemplos: O menino caiu. “Minha sogra ficou avó” (Oswald de Andrade). Repare que a última frase resume ações que envolvem o casamento, a maternidade, a transformação da sogra em avó.



3. Estrutura de Narração

Convencionalmente, o enredo da narração pode ser assim estruturado: exposição (apresentação das personagens e/ ou do cenário e/ ou da época), desenvolvimento (desenrolar dos fatos, contendo complicações e clímax) e desfecho (arremate da trama).

Entretanto, há diferentes possibilidades de compor-se uma tramas: inicia-la pelo desfecho, construí-la apenas através do diálogos, fugir ao nexo lógico de episódios.

Observe com que originalidade Machado de Assis inicia o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Óbito do autor

Algum tempo hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferentes método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés , que também contou a sua morte, não a pôs no introito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Dito isto, expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhada ao cemitério por onze amigos. Onze amigos.

Pentateuco: os Cinco Livros de Moisés, que são os primeiros da Bíblia, desde o Gênese até o Deuteronômio.


Escritores (romancistas, contistas, Novelistas) não compõem um texto estritamente narrativo. 

O que eles produzem é um tecido literário em que aparecem, além da narração, segmentos descritivos e dissertativos.

As narrativas mais longas podem explorar mais detalhadamente as noções de tempo – cronológico (marcado pelo fluxo do inconsciente) – e de espaço (cenário, paisagem, ambiente). 

O envolvimento de várias personagens e os múltiplos núcleos de conflito em torno de uma situação também são comuns nas narrativas extensas.

Portanto, oferecer ao aluno um painel de narrações literárias (romances, novelas, contos) como modelo é distanciar-se da finalidade prática da redação escolar; apesar disso alguns textos são exemplares para ilustrar procedimentos narrativos .



A tessitura narrativa

A narrativa deve tentar elucidar os acontecimentos, respondendo às seguintes preguntas essenciais:


O quê?
Fato(s) que determina(m) a história;

Quem?
Personagem ou personagens;

Como?
Enredo, modo como se tecem os fatos;

Onde?
Lugar ou lugares da ocorrência;

Quando?
Momento ou momentos em que se passam os fatos;

Por quê?
Causa do acontecimento;

Por isso?
Consequência dos fatos.



Note como se aplicam no texto de Manuel  Bandeira  esses elementos:


Tragédia brasileira

Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade.
Conheceu Maria Elvira na Lapa -  prostituída, com  sífilis, dermite nos dedos, uma aliança empenhada e os dentes em petição   de miséria.
Misael tirou maria Elvira da vida, instalou-a num sobrado  no Estácio , pagou médico, dentista, manicura... Dava tudo quanto ele queria.
Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um namorado.
Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro , uma facada, Não fez na disso: mudou de casa.
Viveram três anos assim.
Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael  mudava de casa.
Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua  General Pedra, Olaria, Ramos, Bom Sucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói, Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio , Todos os Santos , Catumbi, Lavradio, Boca do Mato, Inválidos...
Por fim na Rua da Constituição, onde Misael, privado  de sentidos e de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontra-la  caída em decúbito dorsal, vestida de organdi azul.

                 (Manuel Bandeira)

· O quê?  Romance conturbado pela traição  feminina.
·       Quem? Misael e Maria Elvira.
·       Como? Envolvido inconsequente  de um homem de 63 anos com uma prostituta.
·       Onde? Lapa, Estácio, Rocha, Catete e vários outros lugares.
·       Quando? Duração  do relacionamento: três anos.
·       Por quê? Promiscuidade de Maria Elvira.
·       Por isso? Crime Passional: assassinato  de Maria Elvira.


Quando à estrutura narrativa convencional, acompanhe a sequência de ações que compõem o enredo:


·       Exposição: A união de Misael, 63 anos, funcionário público, a Maria Elvira, prostituta.

·       Complicação: a infidelidade de Maria Elvira  obriga Misael a buscar novas moradias para o casal.

·       Clímax: as sucessivas mudanças de residência, provocadas pelo comportamento desregrado  de Maria Elvira, acarretam o descontrole emocional de Misael.
·       Desfecho: a polícia encontra Maria Elvira assassinada com seis tiros.





5 . elementos básicos da narração

São elementos básicos da narração: enredo(ação), personagem, tempo e espaço.

Quando a história é curta, como na narração escolar, são imprescindíveis enredo e personagens. 

A perpectiva de quem escreve é dada pelo foco narrativo ( de primeira ou terceira pessoa). Os discursos (direto e indireto livre) representam a fala da personagem.


No texto a seguir, “Um homem de consciência”. Foram apontados os elementos básicos, a estrutura narrativa – exposição, desenvolvimento e desfecho - , os vários discursos e o foco narrativo.


A onisciência do narrador revela-se no conhecimento íntimo que tem da personagem, desvendando-lhe os pensamentos e apreensões.



Um homem de consciência

Exposição:
Discurso do narrador:-
Chamava-se João Teodoro, só. O mais pacato e modesto dos homens. Honestíssimo e lealíssimo, com um defeito apenas: não dar o mínimo valor a si próprio. Para João Teodoro, a coisa de menos importância no mundo era João Teodoro.


Desenvolvimento:
Discurso do narrador:-
Nunca fora nada na vida, nem admitia a hipótese de vir a ser alguma coisa. E por muito tempo não quis nem sequer o que todos ali queriam: mudar-se para terra melhor.
Mas João Teodoro acompanhava um aperto de coração o deperecimento visível de usa Itaoca.(1)

Monólogo interior:-
 - Isto já foi muito melhor, dizia consigo. Já teve três médicos bem bons
- agora só um e bem ruinzote. Já teve seis advogados e hoje mal há serviço para um rábula ordinário como o Tenório. Nem circo de cavalinhos bate mais por aqui. A Gente que presta se muda. Fica o restolho. Decididamente, a minha Itaoca está se acabando...

Discurso do narrador:-
João Teodoro entrou a incubar a ideia de também mudar-se, mas para isso necessitava dum fato qualquer que o convencesse de maneira absoluta de que Itaoca não tinha mesmo conserto ou arranjo possível.

Monólogo interior:-

-É isso, deliberou lá por dentro. Quando eu verificar que tudo está perdido, que Itaoca não vale mais nada de nada de nada, então arrumo a trouxa e boto-me fora daqui.
Um dia(2)aconteceu a grande novidade: a nomeação de João Teodoro para delegado (3). Nosso homem recebeu a notícia (3). Como se fosse uma porretada no crânio. Delegado , ele! Ele que não era nada, nunca fora nada, não queria ser nada, não se julgava capaz de nada...

Complicação:
Discurso do narrador:-
Ser delegado numa cidadezinha daquelas é coisa seriíssima. Não há cargo mais importante. É o homem que prende os outros, que solta, que manda dar sovas, que vai à capital falar com o governo. Uma coisa colossal ser delegado – e estava ele, João Teodoro, de-le-ga-do de Itaoca!...

Clímax:
Discurso direto:
João Teodoro caiu em meditação profunda(3). Passou a noite em claro, pensando e arrumando as malas (3). Pela madrugada (2) botou-as num burro,(3), montou seu cavalo magro e partiu(3).
- Que é isso, João? Para onde se atira tão cedo, assim de armas e bagagens?
- Vou-me embora, respondeu o retirante. Verifiquei que Itaoca chegou ao fim.
- Mas, como? Agora que você está delegado?
- Justamente por isso. Terra que João Teodoro chega a delegado , eu não moro. Adeus.
Desfecho:
E sumiu(3).

(1)Espaço. (2) Tempo. (3)Ação.

(Monteiro Lobato)




6. Personagem

Personagem é uma palavra feminina que deriva do grego persona (máscara). 

Modernamente, já se convencionou o emprego da palavra nos dois gêneros, tanto para se referir a seres humanos, animados ou a entes personificados. 

Literariamente, pode-se definir a personagem como a pessoa ou o ser personificado ou animado que figura na história e nela se envolve ativa ou passivamente.


Criada no espectro infinito  da imaginação, a personagem assume o perfil físico e psicológico único que só a individualidade de cada autor permite.


Dessa forma, uma personagem revela-se através de dados e aspectos definidos pelo autor, que a dota de características éticas, sociais, ideológicas, políticas, profissionais , etárias, culturais, étnicas e até fantásticas.


Sendo assim, uma personagem pode ser definida psicologicamente:



A mulher do coronel era o tipo de mãe de família. Tinha quarenta anos e ainda conservava na fronte, embora secas, as rosas da mocidade. Era uma mistura de austeridade e meiguice, de extrema bondade e extrema rigidez. Gostava muito de conversar e rir, e tinha a particularidade de amar a discussão, exceto em dois pontos que para ela estavam acima das controvérsias humanas: a religião e o marido. A sua melhor esperança, afirmava, seria morrer nos braços de ambos.

                        (Machado de Assis)


Ou fisicamente:



Magro, meão na altura, dum moreno doentio abria admiravelmente os olhos molhados de tristeza e calmos como um bálsamo. Barba dura sem trato. Os lábios emoldurados no crespo dos cabelos moviam como se rezassem. O ombro direito mais baixo que   o outro parecia suportar forte peso e quem lhe visse as costas das mãos notara duas cicatrizes como feitas por bala. Fraque escuro, bastante velho. Chapéu gasto, de um negro oscilante.

             (Mário de Andrade)


Em alguns casos, o narrador não revela as características psicológicas da personagem, mas procura traduzi-las através de suas ações e comportamento.


Observe no seguinte texto como o autor apresenta sua personagem:



Está sempre a rir, sempre a cantar. Canta o dia inteiro, num tom arrastado, apregoando as revistas que vende. Por aqui, por ali, vai, vem, corre, galopa, atravessa as ruas com uma rapidez de raio, persegue os veículos, desliza entre os automóveis como sombra. Parece invulnerável.
                         (Graciliano Ramos )



Portanto, a aparência, a gestualidade, o comportamento e as ações concorrem para esboçar personagens complexas (personalidade contraditória) e lineares (comportamento previsível).

Essa classificação (complexas e lineares) abrange os tipos e caricaturas, as personagens principais e secundárias, os protagonistas e antagonistas.



Personagem linear


A personagem linear define-se pela permanência e previsibilidade de sua conduta; seu caráter e suas atitudes mantêm-se inalteráveis ao longo da narrativa. Os heróis  das narrativas folhetinescas (romances populares ) costumam ser corajosos, sedutores, românticos. 

Apresentam caráter nobre, gestos, redentores e justiceiros. 

Até os traços físicos correspondem à luminosidade  de sua conduta: olhos ternos, beleza diáfana, viril. Sua ação  heroica será tanto um ato de bravura física quanto um exercício habilidoso da razão ou da prática da nobreza de espírito. 

Já o vilão, em sua linearidade, apresenta em geral aparência repugnante: nariz adunco, olhar injetado, lábios  finos, expressão glacial. 

O aspecto fisionômico do vilão confere com a vilania de seu comportamento: a hostilidade, as paixões vis, a velhacaria, o cinismo , a mentira, o oportunismo e outros aspectos negativos definem o seu mau caráter.

O coringa, personagem do filme Batman, e Juliana a serviçal de o Primo Basílio, de Eça de Queirós, tipificam o vilão que tem na hediondez o ponto de intersecção entre físico e o psicológico.


Assim, a personagem linear encerra um tipo  facilmente identificável que permeia as produções da indústria cultural: histórias em quadrinhos (Mônica , Cascão), telenovelas, fotonovelas, romances de gênero romântico, personagens de programas de humor, etc.





Personagem complexa


A personagem complexa, por sua vez, é imprevisível  em suas atitudes, pois seu comportamento é contraditório, oscilando entre ações edificantes e degeneradas , redentoras e infamantes, benevolentes e hostis, amorosas e odiosas, como os seres humanos. 

Assim, o caráter  da personagem complexa mostra variações de humor e atitudes em suas ações e em sua interioridade psicológica, como é o caso de Capitu, personagem machadiana.


Mesmo surgida nos romances do século XIX, contemporaneamente a personagem complexa aparece em algumas produções da indústria cultural. É o caso, por exemplo, de Charlie Brown, ora ingênuo, ora altivo; Charles Chaplin representando Carlitos – debochado em Tempos Modernos, sentimental e altruísta em Luzes da Ribalta, pernóstico em O Grande Ditador ou humilde e resignado em O Garoto.



Tipo e caricatura

Real ou fictícia, apresentando um conjunto de traços físicos e psicológicos que a definem em sua individualidade, a personagem pode também ser um tipo ou uma caricatura.


O tipo é uma figura singular, de características marcantes que, por suas peculiaridade comportamentais universaliza-se e eterniza-se.

 É o caso, por exemplo, de D. Quixote, Romeu e Julieta e Conselheiro Acácio (O Primo Basílio). Há ainda tipos reconhecidamente populares: o bêbado, a fofoqueira, o malandro, o mascote, a beata, o chato e outros.





Era a comadre uma mulher baixa, excessivamente gorda bonachona, ingênua ou tola até um certo ponto, e finória até outro; vivia do ofício de parteira, que adotara por curiosidade, e benzia de quebranto; todos a conheciam por muito beata e pela mais desabrida papa-missas da cidade. Era a folhinha mais exata de todas as festas que aqui se faziam (...).

        (Manuel Antônio de Almeida)





Quanto à caricatura, ressalta-se uma única qualidade ou tendência que é dilatada ao extremo, provocando uma distorção propositada, a serviço da sátira ou do cômico.



O Dr. Lustosa
Era um homem baixo, de ombros estreitos e caídos. Uma gordura mal distribuída acumulava-se-lhe notadamente nos quadris, na região sacrococcigiana, no ventre e nas bochechas. Quanto ao resto, dava a impressão dum tipo magro e frágil. Os braços, coxas e pernas eram finos; as mãos, miúdas e delicadas, como mãos de menino. Tinha a pele macilenta e pintalgada de cravos, principalmente na testa, no nariz reluzente e no queixo, onde a barba azulava, mais cerrada. A cabeça parecia ter sido modelada em maçapão por um escultor que, forçado a trabalhar com material de confeitaria, procurasse vingar-se dessa circunstância dando à usa obra traços de caricatura. No indicador da mão direita a desembargador trazia sempre o anel simbólico, com um grande rubi engastado. No inverno, quando fazia muito frio, usava-o por cima da luva. Sempre que queria dar relevo a um trecho da conversação, riscava o ar com o dedo do anel, sublinhando assim as palavras com traço vermelho e chispante.

                     (Érico Veríssimo)




Personagens não-humanas

Segundo Massaud Moisés, “a própria etimologia do vocabulário personagem assinala uma restrição semântica que merece registro: animais não podem ser personagens, menos ainda os seres inanimados de qualquer espécie.


Quando comparecem no universo ficcional, os animais tendem a ser mera projeções (como no caso de Quincas Borba) ou denotam qualidades superiores à sua condição, uma espécie de “inteligência” humana (como a Baleia, de Vidas Secas), ou servem de motivo para a ação (como em Moby Dick).


Os apólogos ou fábulas utilizam os animais como protagonistas, mas envolvem-nos de um lado simbólico que os subtrai no círculo zoológico inferior para alcá-los ao perímetro urbano”.

 Como ilustração, lembramos a cachorra Baleia:




Baleia querida dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de preás gordos. Enormes.

                  (Graciliano Ramos)



Quando o protagonista é um ser inanimado (num apólogo) ou um animal (numa fábula), temos um antropomorfização.


O protagonista reveste-se de traços humanos, sobretudo quando à inteligência e ao caráter: é a agulha altiva em “Um apólogo”, de Machado de Assis, é a raposa ardilosa na Fábula “A raposa e as uvas”, de Esopo.


A antropomortização é obtida através do uso da prosopopeia (ver figuras de pensamento). Esse recurso expressivo, utilizado com mais frequência nos textos descritivos, é expediente comum nos apólogos e nas fábulas.

A prosopopeia consiste na atribuição de características humanas a seres não humanos (personificação) ou de características animais a seres inanimados (animização).

No universo literário, podemos encontrar também personagens coletivas. É o caso do romance O Cortiço, em que o próprio cortiço e o sobrado personificam o antagonismo de classes, e de Os Lusíadas, em que Vasco da Gama simboliza o heroísmo e o espírito de conquista do povo português.



Principais e secundárias

As personagens, quanto à sua atuação no enredo, podem ser classificadas como principais ou secundárias.

A personagem principal é aquela que produz os fatos, trama os acontecimentos, ou é o motivo da maioria das ações.

São as personagens secundárias que dão suporte à história, tecendo pequenas ações em torno das personagens principais.



Protagonistas e antagonistas


Outra classificação possível, que geralmente atinge as personagem principais, é a oposição entre protagonista e antagonista.

O primeiro deseja algo que ao segundo cabe impedir, dificultar, cobiçar, destruir, desejar  etc.


O antagonista nem sempre é uma pessoa; pode ser um objeto, um animal, uma situação financeira, cultural, social(pobreza, instrução, trabalho), um problema físico ou ainda uma peculiaridade psicológica, que dificulta o acesso àquilo que o protagonista deseja.




7 . Enredo

O enredo ou   trama corresponde à maneira como a história se desenrola, aos “arranjos” narrativos que cercam as personagens e às situações que as envolvem.

Essa articulação pode revelar o núcleo temático da matéria narrada, seja ela real, seja ficcional; assim falamos em enredo cujas temáticas podem ser conflitos passionais, casos de mistério ou terror, dramas sociais, experiências existenciais, ficção científica etc.

Esse enovelamento de ações a que chamamos enredo abrange as etapas já  explicadas na estrutura narrativa: exposição, desenvolvimento (complicação – ponto de tensão – e clímax –ponto de maior tensão ) e desfecho.


O texto narrativo resulta, portanto, de duas articulações: a História (sequência de fatos) e o enredo (organização dos fatos ). Dessa forma, o enredo é a maneira como o narrador organiza os dados que a história oferece.


Observe como na contextualização de “Domingo no Parque” de Gilberto Gil, os arranjos formais – versificação, rima, estrofe e refrão – e a organização dos fatos, articulando personagens, tempo, espaço e ação, proporcionam dimensão e expressividade a um episódio que seria, como notícia de jornal, apenas corriqueiro.


Domingo no parque

Exposição: identificação das personagens
O rei da brincadeira – ê José
O rei da confusão – ê João
Um trabalhava na feira – ê José
Outro na construção – ê João

Desenvolvimento encadeamento de ações

A semana passada, no fim da semana,
João resolveu não brigar.
No domingo de tarde saiu apressado
E não foi pra ribeira jogar
Capoeira.
Não foi pra lá, pra ribeira,
Foi namorar.

O José como sempre, no fim de semana
Guardou a barraca e sumiu.
Foi fazer, no domingo, um passeio no parque,
Lá perto da boca do rio.
Foi no  parque que ele avistou
Juliana,
Foi que ele viu
Juliana na roda com João,
Uma rosa e um sorvete na mão.
Juliana, seu sonho, uma ilusão,
Juliana e o amigo João.

Complicação: ponto de tensão

O espinho da rosa feru Zé
E o sorvete gelou seu coração.
O sorvete e a rosa – ê José
A rosa e o sorvete – ê José
Oi dançando no peito – ê José
Do José brincalhão – ê José
O sorvete e a rosa – ê José
A rosa e o sorvete – ê José
Do José brincalhão – ê José
Juliana girando – oi girando
Oi na roda gigante – oi girando
Oi na roda gigante – oi girando
O amigo João – oi João

Clímax: ponto de maior tensão
O sorvete é morango – é vermelho
Oi girando e a rosa – é vermelha
Oi girando, girando – é vermelha
Oi girando, girando – olha a faca
Olha o sangue na mão – ê José
Juliana no chão – ê José
Outro corpo caído – ê José
Seu amigo João – ê José
Desfecho
Amanhã não tem feira – ê José
Não tem mais construção – ê João
Não tem mais brincadeira – ê José
Não tem mais confusão – ê João.
                          (Gilberto Gil)



Segundo Fred de Góes (Literatura Comentada ) , “este texto se caracteriza por sua construção cinematográfica em que, após situar as personagens e descrever o cenário  onde a ação se desenrolará , o compositor passa a narrar os fatos, empregando a técnica de montagem em pequenos  flashes.

Além de letra e melodia, o compositor junta ruídos, palavras e gritos sincronizados às cenas descritas , evocando realisticamente um parque de diversões”.


Para que o enredo tenha unidade, os fatos devem estar inter-relacionados, de tal modo que uns sejam a consequência ou efeito dos outros.


Assim, como são muitas as possibilidades de desenvolver-se uma narrativa, muitas são as teorias literárias para analisa-las, sobretudo nos romances.

Estudiosos como Wolfgang Kayser, Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Temístocles Linhares , Gerárd Genette e Georg Lukács são alguns dos nomes que elaboraram teorias  sobre a narrativa romanesca.



8 . tempo

Há duas maneiras de lidar com o tempo  em uma narração: cronológica ou psicologicamente.


Tempo cronológico
O tempo cronológico é o tempo mensurável  em que se desenrola a ação. Indica-se, conforme o caso, dia, mês, ano, hora, minuto, segundo, década, século  etc. 

Não é preciso mencioná-los sempre, mas deve-se dar a entender ao leitor o tempo de duração da história , utilizando-se de expressões como : alguns minutos , instantes, no dia seguinte, algum tempo depois,passaram-se meses, anos ou dias etc.

 O ano era de 1840. Naquele dia – uma segunda-feira do mês de maio – deixei-me estar alguns instantes na Rua da Princesa.
                               (Machado de Assis)




O escritor monta o tempo narrativo distribuindo-o  de tal forma que seja aceito pelo leitor:



No dia seguinte, estava Rubião ansiosos por ter ao pé de si o recente amigo da estrada de ferro, e determinou ir a Santa Tereza , à tarde: mas foi o próprio Palha que o procurou logo de manhã...
                          (Machado de Assis)


Sejam em saltos abruptos (milênios, séculos, décadas), seja em períodos curtos no mesmo dia, em uma semana), mantém-se a sucessão temporal.

Um recurso possível  para alterar a linha temporal é antecipar um fato futuro ou regredir, em flash-black, para um passado a ser relatado.

A técnica do flash-black, muito utilizada por Machado de Assis, aparece a seguir num trecho do conto “Tempo da Camisolinha”, de Mário de Andrade.




Meus cabelos eram muito bonitos, dum negro quente, acastanhado nos reflexos. Caíam pelos meus ombros em cachos gordos, com ritmos pesados de molas de espiral. Me lembro de uma fotografia minha desse tempo, que depois destruí por uma espécie de polidez envergonhada... Era já agora bem homem e aqueles cabelos adorados na infância, me parecem de repente como um engano grave, destruíam com rapidez o retrato. Os traços não  eram felizes, mas na moldura da cabeleira havia sempre um olhar manso, um rosto  sem marcas, franco, promessas de alma sem maldade. De um ano depois do corte dos cabelos ou  pouco mais, guardo outro tirado junto com Totó, meu mano. Ele, quatro anos mais velho que eu, vem garboso e completamente infantil numa bonita roupa marinheira; eu, bem menor, inda conservo uma camisolinha de veludo, muito besta, que minha mãe por economia teimava utilizar até o fim.





Tempo psicológico

O tempo psicológico, que não é mensurável, flui na mente das personagens.

Neste caso, transmite a sensação experimentada durante o tempo em que o fato ocorreu: a personagem pode ter passado por situações que pareceram extremamente longas, mas que, na realidade, duraram apenas alguns minutos.

 O tempo psicológico é produto de uma experiência interior mensurável apenas subjetivamente. Traduz-se com palavras a duração de um acontecimento, através da intensidade emocional que o acompanha.



O suplício durou bastante, mas, por muito prolongado que tenha sido, não igualava a mortificação do fase preparatória: o olho duro a magnetizar-me, os gestos ameaçadores, a voz rouca a mastigar uma interrogação incompreensível.

                   (Graciliano Ramos)




Partículas temporais

a)        As partículas denotadoras de tempo mais importantes são as conjunções e locuções conjuntivas, que exprimem:


Tempo anterior: antes, que;

Tempo posterior: depois que, assim que;

Tempo imediatamente posterior: logo que, mal, apenas;

Tempo simultâneo ou concomitante: quando, enquanto;

Tempo inicial (tempo a partir do qual se inicia a ação): desde que, desde quando;


Tempo em que termina a ação iniciada no passado e prolongada até o momento em que se fala: agora que, hoje que, a última vez que;
Ações reiteradas ou habituais: cada vez que, toda vez que, sempre que.

Algumas dessas locuções conjuntivas agregam-se com frequência partículas ou advérbios de valor intensivo: pouco antes que, muito antes que, imediatamente depois que etc.

O pronome relativo entra em vários conglomerados de sentido temporal: depois do que, durante o tempo em que, até o dia (hora, momento) em que, no instante em que etc.

b)        Vocabulário da área semântica de tempo:

Simultaneidade: durante, enquanto, ao mesmo tempo, simultaneamente, coincidentemente, ao passo que, à medida que...

Antecipação: antes, primeiro, antecipadamente, véspera...

Posterioridade: depois, posteriormente, a seguir, em seguida, sucessivamente, por fim, afinal, mais tarde...

Intervalo: meio tempo, ínterim...

Tempo presente: atualmente, agora, já , neste instante, o dia de hoje, modernamente...

Tempo futuro: amanhã, futuramente, em breve, dentro em pouco, proximamente, iminente, prestes a...

Tempo passado: tempo idos, outros tempos, outrora, antigamente...

Frequência: constantemente, habitualmente, costumeiramente, usualmente, corriqueiramente, repetidamente, tradicionalmente, amíude, com frequência, muitas vezes...

Infrequência: raras vezes, raramente, raro, poucas vezes, nem sempre, ocasionalmente, esporadicamente, de quando em quando, de vez em quando, de tempos em tempos...

A sucessão temporal contribui para o encadeamento das ações, conferindo um caráter dinâmico à narração.



9. espaço

O espaço é o lugar onde ocorrem as ações em que se movimentam as personagens. 

Pode ser ilimitado como o universo ou restrito como uma casa.

Para caracterizá-lo, são empregados recursos descritivos que recuperam a percepção objetiva (dos cinco sentidos) e as impressões subjetivas (psicológicas).

Se a cobertura descritiva desvela integralmente o objeto, pessoa, cena ou paisagem, temos a fidelidade fotográfica, que permite ao leitor “visualizar” o espaço descritivo. 

Quando a descrição apenas sugere traços (objetivos e subjetivos) dos elementos, ao leitor é instigado a completar a imagem com a criatividade e a fecundidade de sua imaginação.



Organização espacial


A indicação do espaço pode aparecer no começo, no meio ou no fim da narrativa.

Para utilizar as indicações de espaço, deve-se obedecer a uma norma de organização, necessária na descrição e na narração: parte-se do exterior para o interior; ou da esquerda para a direita; ou caracterizam-se os elementos que estão abaixo, considera-se o que está ao norte e, em seguida, o que está ao sul.


São expressões indicadoras de ordenações por espaço:

Advérbios e locuções de lugar:
Longe, perto
Em frente, diante, defronte
Atrás, detrás
Abaixo, acima, debaixo
Dentro, fora
Aí, ali, cá, além, lá
À direita, à esquerda
A distância
Ao lado
Sobre, sob

Certas locuções prepositivas:
Longe de, perto de, junto de
Em frente de, em frente a, diante de , defronte de, adiante de
Atrás de, detrás de, por trás de
Abaixo de, debaixo de, embaixo de, por baixo de
Acima de, em cima de, por cima de
Dentro de, fora de
Ao lado de, ao redor de, em redor de


Adjuntos adverbiais de lugar:
Exemplos: No Brasil, na Europa, Nos sul, no norte do país, nas grandes cidades, longe dali, numa certa região.



Cenário funcional e decorativo

O cenário no qual as personagens se movimentam e interagem pode ser decorativo ou funcional. Quando decorativo ou funcional. 

Quando decorativo, o espaço é lugar de referência, apenas situando onde acontece o fato e fazendo sobressair quem dele participa.


As pausas descritivas podem precipitar ou reter o curso narrativo, promovendo o afrouxamento da narrativa ou fazendo irromper a força imaginativa do leitor.


Enquanto o cenário funcional detalha para a ação, o decorativo detalha para a inércia contemplativa. Se o aparato descritivo for subtraído de um texto, pode reduzi-lo a um relato sem fecundidade, sem virtuosismo.


Na estética do Romantismo, a espacialidade é explorada em detalhes, correspondendo ao gosto da época em que floresceu sua literatura. Quando o cenário é a natureza, o descritivismo reflete os estados interiores do “eu”.


A descrição romântica é, sobretudo, um recurso decorativo.



Aí três ou quatro léguas acima de sua foz o Paquequer lança-se rápido sobre o seu leito e atravessa as florestas como o tapir, espumando, deixando o pelo esparso pelas pontas do rochedo  e enchendo a solidão, foge-lhe a terra; o soberbo rio recua um momento para concentrar suas forças e precipita-se de um só arremesso, como o tigre sobre a presa.
Depois, fatigado do esforço supremo, se estende sobre a terra  e adormece numa linda bacia que a natureza formou e onde o recebe como em leito de noiva, sob cortinas de trepadeiras e flores agrestes.

         (José de Alencar, O Guarani)


Já o espaço funcional é determinante da história, antecipando a ação ou enquadrando o lugar em que se desenrolará um episódio. 

No Realismo, o cenário físico age sobre as personagens, conforme os ideários que orientavam as produções literárias da época. Assim  textos de Machado de Assis, Euclides da Cunha, Aluísio Azevedo ou Eça de Queirós inserem suas personagens num espaço fundamental.


No realismo, o meio (definido descritivamente) interfere no comportamento psicológico e social das personagens, confirmando a teoria determinista de que o homem é produto do meio.

A descrição, quando funcional, como no Realismo, é sempre uma relação decifradora de traços e acontecimentos entre o home e o mundo exterior.

Na descrição realista, o empenho documental recria a realidade. Nenhum detalhe é desprovido de interesse, ganhando destaque através das impressões sensoriais.

Assim, pode-se apreender o mundo como olhos realistas ou com pulsações românticas, através do poder evocador das palavras, buscando a vitalidade entre o tempo e o espaço e a ação.

Compare agora as descrições de ambiente romântico e realista, respectivamente:



Havia à Rua do Hospício, próximo ao campo, uma casa que desapareceu com as últimas reconstruções.
Tinha três janelas de peitoral na frente; duas pertenciam à sala de visitas; a outra a um gabinete contíguo.
O aspecto da casa revelava, bem como seu interior, a pobreza da habitação.
A mobília da casa consistia em sofá, seis cadeiras e dois consolos de jacarandá, que já não conservavam o menor vestígio de verniz. O papel de parede de branco passara a amarelo e percebia-se que em alguns pontos já havia sofrido hábeis remendos.
O gabinete oferecia a mesma aparência. O papel que fora primitivamente azul tomara a cor de folha seca.
Havia no aposentos uma cômoda de cedro que também servia de toucador, um armário de vinhático, uma mesa de escrever,  e finalmente a marquesa, de ferro, com o lavatório e vestida de mosquiteiro verde.
Tudo isto, se tinha o mesmo ar de velhice dos móveis da sala, era como aqueles cuidadosamente limpo e espanejado, respirando o mais escrupuloso asseio. Não se via uma teia de aranha na parede, nem sinal de poeira nos trastes. O soalho mostrava aqui e ali fendas na madeira; mas  uma nódoa sequer não manchava as tábuas areadas.

                           (José de Alencar)

Era a sala geral de estudo, à beira do pátio central, uma peça incomensurável, muito mais extensa do que larga. De uma das extremidades, quem não tivesse extraordinária vista custaria a reconhecer outra pessoa na extremidade exposta. A um lado, encarreiravam-se quatro ordens de carteiras de pau envernizado e os bancos. À parede, em frente, perfilavam-se grandes armários de portas numeradas, correspondentes a compartimentos fundos; depósitos de livros. Livros é o que menos se guardava em muitos compartimentos. O dono pregava um cadeado à portinha e formava um interior à vontade. Uns, os futuros sportmen, criavam ratinhos cuidadosamente desdentados a tesoura, que se atrelavam a pequenos carros de papelão; outros, os políticos futuros, criavam camaleões e largatixas, declarando-se-lhes precose a propensão pelo viver de rastos e pela cambiante das peles; outros, entomologistas, enchiam de casulos dormentes  a estante e vinham espiar a eflorescência das borboletas; os colecionadores, Ladislaus Netos um dia, fingiam museus mineralógicos, museus botânicos , onde abundavam as delicadas rendas secas de filamentos das folhas descarnadas; outros davam-se à zoologia e tinham caveiras de passarinhos, ovos vazados,davam-se à zoologia e tinham caveiras de passarinhos , ovos vazados,
cabras em cachaça, Um destes últimos sofreu uma decepção.
Guardava preciosamente o crânio de não sei que fenomenal quadrúpede encontrado em escavações de uma horta, quando verificou-se que era uma carcaça de galinha!
          
                     (Raul Pompeia)





Espaço físico e social

Pode-se também discriminar os espaços físico e social.

No físico, estão os domínios da natureza. Lembramos na literatura romântica os espaços nostálgicos, sacralizados ou devoradores: a primavera eterna, as torrentes avassaladoras, os penhascos sombrios, as matas virgens, os sertões ermos.


No social, estão os limites culturais, como nos romances urbanos:  as sociedades dos salões, dos saraus, dos teatros, além de cortiços, vendas, feiras, ambientes espúrios, a pobreza citadina.


Observe, no fragmento romântico abaixo, o arrebatamento descritivo de um espaço físico – um cenário da natureza:



Enquanto uma canoa deslizava misteriosamente, levando Ceci e Peri, o castelo sonhorial de D.Antônio de Maria esturgia nos ares, destruído pelo paiol de pólvora incendiado. Da nobre e opulenta mansão restava apenas um monturo e uma tristíssima lembrança.
Sobrevivam somente Cecília, o índio e D. Diego. A água do rio subiu espantosa e repentinamente. Os dois, Ceci e Peri, acolheram-se ao topo de uma palmeira. E a inundação aumenta numa catástrofe assustadora. O índio arranca a palmeira da terra.
E a palmeira, arrastada pela corrente impetuosa do Paraíba, seguia o destino das águas. Seguia rapidamente... até sumir-se no horizonte.

                    (José de Alencar )



Atente para a descrição de um espaço social em um conto atual:


O prédio, de ordinário, é velho imundo, e em suas paredes sobram suores, tensões, histórias. À entrada ficam tipos magros que vagabundeiam, esbranquiçados ou encardidos, mexendo a prosa macia que verifica pernas que passam, discute jogo e conta casos, com as falas coloridas de uma gíria própria, tão dissimulada quanto a dos bicheiros, dos camelôs ou dos turfistas. A entrada é de um bar comum, comum. Como os outros. Mas este é um fecha-nunca, olho aceso dia e noite, noite e dia. Mantém pipoqueiro, engraxataria, banca de jornais. E movimento. Adiante é que estão o balcão das bebidas, o salão do barbeiro, a manicure, talvez até a prateleira de frutas. Depois , as cortinas verdes, em todo o rigor do estilo, ou, mais simplesmente, a porta de vaivém. E, a um passo, se cai na boca do inferno, chamada salão, campo, casa, bigorna , gramado. O nome mais usual e descolorido é salão de bilhar. É lá que se ouve, logo à entradinha, uma fala macia enfeitada de um gesto de mão, um chamamento e uma ginga de corpo, como uma suave, matreira e debochada declaração de guerra:

- Olá, meu parceirinho! Está a jogo ou a passeio?

                                 ( João Antônio)




10. o descritivismo na narração

As passagens descritivas numa narração revestem com expressividade personagens, objetos e situações.


Como uma pintura realçada por vários matizes, a narração ganha humor, lirismo ou dramaticidade no descritivismo oportuno e manejado com estilo.


Note a intervenção descritiva  na composição das personagens e situações do texto abaixo:



Vestia uma camisa listrada e saiu por aí

Chegou em casa, na Rua das Marrecas, soltando marimbondos contra o carnaval. E enquanto tirava o colarinho de goma:
-País desgraçado! Tudo é feriado! Um funcionário de responsabilidade, com encargo de chefe de seção não pode trabalhar.
Ninguém despacha coisa alguma. É só pulo de macaco e fantasia de baiana. Até o Desembargador Jupiaçu Feijó vai sair de Marquês de Pombal. É o fim do mundo, Dona Escolástica!
E colocando os colarinhos na cadeira:
- Não aguento mais. Vou para os capuchinhos fazer meu retiro espiritual. Já falei com Dom Alvorado.
Dona Escolástica, avassaladora senhora de prendas domésticas, fina como um machucador de cozinha, bateu palmas.

E nas palmas dos cem quilos de Dona Escolástica embarcou Torquato Saquarema para a paz dos capuchinhos. Na porta de casa, orgulhosa do marido, a terrível senhora deu a última mão de tinta no seu consentimento:
- Vai, Saquarema. Vai com Deus, meu filho.
Foi. Mas deu azar. O Bloco Vai Que Eu Fico Em Casa, da moça do estandarte ao último tamborim, entrou numa grade de não caber na delegacia, pelo que transbordou pelas páginas dos jornais . E lá veio, em quatro colunas, encadernado de baiana, o marido de Dona Escolástica. Na quarta feira, ao deixar a prisão, Torquato Saquarema tomou uma providência enérgica. Pediu asilo na Embaixada do Peru.

                  (José Candido de Carvalho)




Nessa narrativa, além dos recursos linguísticos, as imagens descritivas revelam um humor diferenciado, com sabor tipicamente brasileiro.


Observe no trecho que se segue, extraído do romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, a caracterização enumerativa, os núcleos mínimos significativos, a cronologia temporal demarcada através da sequência de ações e a impressão emotiva que, reunidos num estilo compacto e sincopado, marcam a expressividade narrativa e a precisão descritiva do texto.



Notas
Soluços, lágrimas, casa armada, veludo preto nos portais, um homem que veio vestir o cadáver, outro que tomou a medida do caixão, caixão, essa, tocheiros, convites, convidados que entravam, lentamente, a passo surdo, e apertavam a mão à família, alguns tristes, todos sérios e calados, padre e sacristão, rezas, aspersões d’água benta, o fechar do caixão, a prego e Martelo, seis pessoas que o tomam de essa, e o levantam, e o descem a custo pela escada, não obstante os gritos, soluços e novas lágrimas da família, e vão até o coche fúnebre, e o colocam em cima, e traspassam as correias, o rodar do coche, o rodar dos carros, um aum... Isto que parece um simples inventário eram notas que eu havia tomado um capítulo triste e vulgar que não escrevo.

         (Machado de Assis)




11.Estilo

É o estilo que empresta ao texto singularidade linguística, tornando-o diferenciado. Podemos falar em estilo de época (estilo romântico, realista, barroco, etc), figuras de estilo (metáfora, metonímia, hipérbole etc.) e estilo individual.



Cada época tem um estilo: conjunto de características específicas e semelhantes que se refletem na arte, na ciência, na religião, nos costumes em geral. 

A essa semelhança na maneira de conceber e expressar a realidade chamamos estilo de época.


Apesar  de um mesmo estilo literário (romântico, por exemplo)definir várias obras (romance, contos, poemas), o que as diferencia é o manejo das possibilidades linguísticas, que tornam única a produção de cada autor.


O estilo individual traduz os movimentos do pensamento e do sentimento, através de uma linguagem que faz emergir a individualidade daquele que escreve. 

Ele revela a manipulação dos recursos de uma língua como um meio de expressão determinado pela sensibilidade e pela natureza do autor. 

Estilo é, pois uma atitude do escritor diante das possibilidades que um código oferece, num processo de seleção vocabular e ordenação das palavras, chegando a arranjos próprios que resultam num modo de escrever, numa estética peculiar.


Paulo Mendes Campos, ao apresentar, sob a forma de crônica, as várias interpretações (versões) dadas a um mesmo fato, com humor e irreverência, mostra toda a versatilidade dos recursos da língua, levando o leitor a apreciar soluções estilísticas que traduzem diferentes processos mentais de elaboração do código:



Os diferentes estilos
Paradiando Raymond Quesneau, que toma um livro inteiro para descrever de todos os modos possíveis um episódio corriqueiro, acontecido em um ônibus em Paris, narra-se aqui, em diversas modalidades de estilo, um fato comum da vida carioca, o saber: o corpo de um homem de quarenta anos presumíveis e encontrado de madrugada pelo vigia de uma construção, à margem da Lagoa Rodrigo de Freitas, não existindo sinais de morte violenta.

Estilo interjetivo – Um cadáver! Encontrado em plena madrugada! Em  pleno bairro de Ipanema! um homem desconhecido! Coitado! Menos de quarenta anos! Um que morreu quando a cidade acordava ! que pena!


Estilo colorido – Na hora cor-de-rosa da aurora, à Margem da cinzenta Lagoa Rodrigo de Freitas, um vigia de cor preta encontrou o cadáver de um homem branco, cabelos loiros, olhos azuis, trajando calça amarela, casaco pardo, sapato marrom, gravata branca com bolinhas azuis. Para este o destino foi negro.


Estilo antimunicipalista- Quando mais um dia de sofrimentos e demandos nasceu para esta cidade tão mal governada, nas margens imundas, esburacadas e fétidas da Lagoa Rodrigo de Freitas, e em cujos arredores falta água há vários meses, sem falar nas frequentes mortandades de peixes já famosos, o vigia de uma construção (já permitiram, por debaixo do pano, a ignominiosa elevação de gabarito em Ipanema) encontrou o cadáver de um desgraçado morador desta cidade sem policiamento. Como não podia deixar de ser, o corpo ficou ali entregue às moscas que pululam naquele perigoso foco de epidemias. Até quando?


Estilo reacionário – Os moradores da Lagoa Rodrigo de Freitas tiveram na manhã de hoje o profundo desagrado de deparar com o cadáver de um vagabundo que foi logo escolher para morrer (de bêbado) um dos bairros mais elegantes desta cidade, como se já não bastasse para enfear aquele local uma sórdida favela  que nos envergonha aos olhos dos americanos que nos visitam ou que nos dão a honra de residir no Rio.


Estilo então - então o vigia de uma construção em Ipanema, não tendo sono, saiu então para passeio de madrugada. Encontrou então o cadáver de um homem. Resolveu então procurar um guarda. Então o guarda veio e tomou então as providências necessárias. Aí então eu resolvi te contar isto.


Estilo preciosista – No crepúsculo matutino de hoje, quando fulgia solitária e longíngua a Estrela-d’Alva, o atalaia de uma construção civil, que perambulava insone pela orla sinuosa e murmurante de uma lagoa serena, deparou com a atra e lúria visão de um ignoto e gélido ser humano, já eternamente sem o hausto que vivifica.


Estilo Nélson Rodrigues – Usava gravata de bolinhas azuis e morreu!


Estilo sem jeito – Eu queria tanto ter o dom da palavra, o gênio de um Rui ou o estro de um Castro Alves, para escrever o que se passa na manhã de hoje. Mas não sei escrever, porque nem todas as pessoas que têm sentimento são capazes de expressar esse sentimento. Mas eu gostaria de deixar, ainda que sem brilho literário, tudo aquilo que senti. Não sei se cabe aqui a palavra sensibilidade. Talvez não caiba. Talvez seja uma tragédia. Não sei escrever mas o leitor poderá perfeitamente imaginar o que foi isso. Triste, muito triste, Ah, se eu soubesse escrever.


Estilo feminino – Imagine você, Tutsi, que ontem fui ao Sacha’s, legalíssimo e dormi tarde. Com o Tony . Pois logo hoje, minha filha, que eu estava exausta e tinha hora marcada no cabeleireiro, e estava também querendo dar uma passada na costureira, acho mesmo que vou fazer aquele plissadinho, como a da Teresa , o Roberto resolveu me telefonar quando eu estava no melhor do sono. Mas o que era mesmo que eu queria te contar? Ah, menina, quando eu olhei da janela, vi uma coisa horrível, um homem morto lá na beira da Lagoa. Estou tão nervosa! Logo eu que tenho horror de gente morta!


Estilo Lúdico ou infantil – Na madrugada de hoje por cima, o corpo de um homem por baixo foi encontrado por cima pelo vigai de uma construção por baixo. A vítima por baixo não trazia identificação por cima. Tinha aparentemente por cima a idade de quarenta anos por baixo.

Estilo Didático – Podemos encarar a morte do desconhecido encontrado morto à margem da Lagoa em três aspectos:
a) policial;
b) humano;
c) teológico.

Polícia e homem: fenômeno; alma e Deus: epifenômeno.
Muito simples, como os senhores veem.
                       (Paulo Mendes Campos )



Bom estudo meus amores, com carinho de sua eterna Prof Dr Master Reikiana Aldry Suzuki , bjs.




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