sábado, 2 de fevereiro de 2013

CONTOS DE MACHADO DE ASSIS - ALDRY SUZUKI





CONTOS
MACHADO DE ASSIS
 UNS BRAÇOS
Conto Machado de Assis   Uns braços
Uma mulher leviana se deixa enlevar pela paixão secreta de um jovem e, com um beijo, revela seu a mais íntimos desejos.


Inácio, quinze anos, bonito e inculto, mora na casa do solicitador Borges, para quem trabalha como aprendiz.


 Vive obcecado a observar os braços da patroa, D. Severina, que, parece de propósito, trás os braços nus.D.Severina depois de haver tratado o rapaz com indiferença, percebe que é amada por Inácio e passa a tratá-lo com carinho e doçura.


Num domingo, Inácio deita-se cansado na rede e dorme sonhando com D. Severina.


 O marido de D. Severina sai de casa e ela vai até o quarto do rapaz e beija-lhe enquanto ele dorme.


Borges retorna no outro final de semana e despede o rapaz. Inácio saiu sem entender por que estava sendo despedido, já que nem sequer sabia que havia sido beijado pela mulher do patrão.





CONTO DA ESCOLA
Conto de Machado de Assis    -  Conto da escola
"Conto de Escola" é narrado em primeira pessoa por um narrador já adulto, que retorna e analisa criticamente um episódio ocorrido em sua infância.
A história contada por Pilar - o narrador - é a seguinte: numa segunda-feira, pela manhã, Pilar decidia se brincaria no morro de São Diogo ou no campo de Sant'Anna.
 Lembrando-se, porém, da sova de marmeleiro que o pai lhe dera por causa de dois suetos (descanso escolar , folga) .
Na semana anterior, decide ir à aula. Na aula, é interpelado por Raimundo - filho do professor que lhe oferece uma moedinha de prata ganha em seu aniversário.
 Em troca, Raimundo pede a Pilar que lhe explique a lição. Pilar aceita, mas, durante o negócio, percebe que Curvelo, um outro colega, prestava atenção neles. Curvelo, logo a seguir, delata os colegas ao professor Raimundo.
Este, furioso, atira a moeda pela janela e castiga os meninos com a palmatória, recriminando-os seriamente pela transação.
 Depois disso, Pilar promete a si mesmo que daria uma sova em Curvelo. Na saída, persegue-o , mas Curvelo consegue escapar. Na manhã do outro dia, depois de ter sonhado com a tal moedinha, Pilar sai com a intenção de procurá-la, mas sua atenção é desviada pelo batalhão de fuzileiros, que marchavam ao som de tambores. Desiste das moedas e segue-os marchando. Conta-nos que voltou tarde para casa, " sem pratinha nos bolsos nem ressentimentos na alma" no final pondera que Raimundo e Curvelo foram os primeiros a lhe dar a noção da corrupção e da delação.
UM HOMEM CÉLEBRE



UM HOMEM CÉLEBRE
- Ah! o senhor é que é o Pestana? perguntou Sinhazinha Mota, fazendo um largo gesto admirativo. 


E logo depois, corrigindo a familiaridade: - Desculpe meu modo, mas... é mesmo o senhor?


Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era ele.

 Vinha do piano, enxugando a testa com o lenço, e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. 

Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo, que tinham ido jantar com a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro de 1875... Boa e patusca viúva! 


Amava o riso e a folga, apesar dos sessenta anos em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de 1876. 

Boa e patusca viúva! Com que alma e diligência arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido; Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano.

 Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a viúva correu novamente ao Pestana para um obséquio mui particular.


- Diga, minha senhora.
- É que nos toque agora aquela sua polca Não bula comigo, nhonhô.
Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. 

Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear a polca da moda. 

Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. 

Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.
Sinhazinha Mota estava longe de supor que aquele Pestana que ela vira à mesa de jantar e depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé, cabelo negro, longo e cacheado, olhos cuidosos, queixo rapado, era o mesmo Pestana compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada a polca. 

Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborrecido e vexado. 

Nem assim as duas moças lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as ouvir; ele recebeu-as cada vez mais enfadado, até que alegando dor de cabeça pediu licença para sair. 

Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou retê-lo. Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso, não aceitou nada, teimou em sair e saiu.


Rua fora, caminhou depressa, com medo de que ainda o chamassem; só afrouxou depois que dobrou a esquina da rua Formosa. Mas aí mesmo esperava-o a sua grande polca festiva. 

De uma casa modesta, à direita, a poucos metros de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarinete. Dançava-se. 

Pestana parou alguns instantes, pensou em arrepiar caminho, mas dispôs-se a andar, estugou o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. 

As notas foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem entrou na rua do Aterrado, onde morava. 

Já perto de casa viu vir dois homens; um deles, passando rentezinho com o Pestana, começou a assobiar a mesma polca, rijamente, com brio, e o outro pegou a tempo na música, e aí foram os dois abaixo, ruidosos e alegres, enquanto o autor da peça, desesperado, corria a meter-se em casa.


Em casa, respirou. Casa velha, escada velha, um preto velho que o servia, e que veio saber se ele queria cear.


- Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir.


Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos fundos. 

Quando o preto acendeu o gás da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que pendiam da parede. 

Um só era a óleo, o de um padre, que o educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. 

Certo é que lhe deixou em herança aquela casa velha, e os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. 

Compusera alguns motetes o padre, era doido por música, sacra ou profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa de que se não ocupa a minha história, como ides ver.


Os demais retratos eram de compositores clássicos, Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck, Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros litografados, todos mal encaixilhados e de diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. 

O piano era o altar; o evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.


Veio o café; Pestana engoliu a primeira xícara, e sentou-se ao piano. 

Olhou para o retrato de Beethoven, e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto, mas com grande perfeição. Repetiu a peça; depois parou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas. Tornou ao piano; era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do mesmo modo, com a alma alhures. 

Haydn levou-o à meia-noite e à segunda xícara de café.


Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. 

De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. 

As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. 

Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Mota, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. 

Talvez a idéia conjugal tirou à moça alguns momentos de sono. 

Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. 

A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cuidava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. 

Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?
Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. 

Outras vezes, sentado ao piano, deixava os dedos correrem, à aventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. 

Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. 

Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano.


Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir; estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições no dia seguinte. 

Pouco dormiu; acordou às sete horas. Vestiu-se e almoçou.

- Meu senhor quer a bengala ou o chapéu-de-sol? perguntou o preto, segundo as ordens que tinha, porque as distrações do senhor eram frequentes.

- A bengala.
- Mas parece que hoje chove.
- Chove, repetiu Pestana maquinalmente.
- Parece que sim, senhor, o céu está meio escuro.


Pestana olhava para o preto, vago, preocupado. De repente:
- Espera aí.

Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. 

Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca buliçosa, como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. 

Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chuva, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. 

Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. 

Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma como de uma fonte perene.
Em pouco tempo estava a polca feita. 

Corrigiu ainda alguns pontos, quando voltou para jantar; mas já a cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação. 

Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que andariam já por umas trinta. 

O editor achou-a linda.

- Vai fazer grande efeito.

Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um titulo poético, escolheu este: Pingos de sol

O editor abanou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já de si, destinados à popularidade, - ou por alusão a algum sucesso do dia, - ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois: A lei de 28 de Setembro, ou Candongas não fazem festa.


- Mas que quer dizer Candongas não fazem festa? perguntou o autor.

- Não quer dizer nada, mas populariza-se logo.

Pestana, ainda donzel inédito, recusou qualquer das denominações e guardou a polca; mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da publicidade levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.

Agora, quando Pestana entregou a nova polca, e passaram ao título, o editor acudiu que trazia um, desde muitos dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse, título de espavento, longo e meneado. Era este: Senhora dona, guarde o seu balaio.


- E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.
Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição. 

A fama do compositor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, original, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. 

Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado.
Essa lua-de-mel durou apenas um quarto de lua. Como das outras vezes, e mais depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remorsos. Vexado e enfastiado, Pestana arremeteu contra aquela que o viera consolar tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil e graciosa. 

E aí voltaram as náuseas de si mesmo, o ódio a quem lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico, uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach e Schumann. 

Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair batizado. 

Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse mão da música fácil...
- As polcas que vão para o inferno fazer dançar o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao deitar-se.


Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de Pestana, à própria sala dos retratos, irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor, imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe não manava nada. 

Nessa alternativa viveu até casar, e depois de casar.
- Casar com quem? perguntou Sinhazinha Mota ao tio escrivão que lhe deu aquela notícia.


- Vai casar com uma viúva.
- Velha?
- Vinte e sete anos.
- Bonita?
- Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que ele se enamorou dela, porque a ouviu cantar na última festa de São Francisco de Paula. 

Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica.


Os escrivães não deviam ter espírito, - mau espírito quero dizer. 

A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo, que lhe curou a dentadinha da inveja. Era tudo verdade. 

Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. 

Recebeu-a como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida, a causa da esterilidade e do transvio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um arruador de horas mortas; tinha as polcas por aventuras de petimetres. 

Agora, sim, é que ia engendrar uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas.


Essa esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do casamento. 

Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão das noites, nem no tumulto dos dias.


Desde logo, para comemorar o consórcio, teve idéia de compor um noturno. Chamar-lhe-ia Ave, Maria

A felicidade como que lhe trouxe um princípio de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava às escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte, vinha tocar com ele, ou ouvi-lo somente, horas e horas, na sala dos retratos. 

Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos do Pestana. Um domingo, porém, não se pôde ter o marido, e chamou a mulher para tocar um trecho do noturno; não lhe disse o que era nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a com os olhos.


- Acaba, disse Maria; não é Chopin?
Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou dois trechos e ergueu-se. Maria assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memória, executou a peça de Chopin. 

A idéia, o motivo eram os mesmos; Pestana achara-os em algum daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. 

Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o lado da ponte, caminho de São Cristóvão.


- Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas... Viva a polca!
Homens que passavam por ele, e ouviam isto, ficavam olhando, como para um doido. 

E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a ambição e a vocação... Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve idéia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou a si e tornou a casa.


Poucos dias depois, - uma clara e fresca manhã de maio de 1876, - eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito particular e conhecido. 

Ergueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a noite, e agora dormia profundamente. 

Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. 

Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes compôs e publicou mais duas. 

Maria não soube nada; ia tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado e desesperado.


Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo, porque na vizinhança havia um baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. 

Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um ar de ironia e perversidade. 

Ele sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos, a que obrigava alguma daquelas composições; tudo isso ao pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama... Todas as horas da noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas da Colônia e de Labarraque, saltando sem parar, como ao som da polca de um grande Pestana invisível.


Enterrada a mulher, o viúvo teve uma única preocupação: deixar a música, depois de compor um Réquiem, que faria executar no primeiro aniversário da morte de Maria. Escolheria outro emprego, escrevente, carteiro, mascate, qualquer coisa que lhe fizesse esquecer a arte assassina e surda.


Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. 

Releu e estudou o Réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. 

A obra, célere a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. 

Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem idéia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o Réquiem não estava concluído. 

Redobrou de esforços esqueceu lições e amizades. 

Tinha refeito muitas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. 

Quinze dias, oito, cinco... A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.


Contentou-se da missa rezada e simples, para ele só. 

Não se pode dizer se todas as lágrimas que lhe vieram sorrateiramente aos olhos foram do marido, ou se algumas eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou ao Réquiem.


- Para quê? dizia ele a si mesmo.


Correu ainda um ano. No princípio de 1878, apareceu-lhe o editor.
- Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento. Que tem feito?
- Nada.


- Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. 

Venho propor-lhe um contrato; vinte polcas durante doze meses; o preço antigo, e uma porcentagem maior na venda. Depois, acabado o ano, podemos renovar.


Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha, vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o resto, que era assaz escasso. Aceitou o contrato.


- Mas a primeira polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. 

A polca há de chamar-se: Bravos à eleição direta! Não é política; é um bom título de ocasião.


Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do longo tempo de silêncio, não perdera a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. 

As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. 

Já agora pedia uma entrada de graça, sempre que havia alguma boa ópera ou concerto de artista, ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de coisas que nunca lhe haviam de brotar do cérebro. 

Uma ou outra vez, ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito; então, sentava-se ao piano, e, sem idéia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.


Assim foram passando os anos, até 1885.


 A fama do Pestana dera-lhe definitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. 

Tinha ainda as alternativas de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menos violentas. 

Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.


Naquele ano, apanhou uma febre de nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa. 

Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que não sabia da doença, e ia dar-lhe notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. 

O enfermeiro, pobre clarinete de teatro, referiu-lhe o estado do Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. 

O doente é que instou para que lhe dissesse o que era; o editor obedeceu.

- Mas há de ser quando estiver bom de todo, concluiu.

- Logo que a febre decline um pouco, disse o Pestana.

Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarinete foi pé ante pé preparar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.
- Adeus.


- Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes dias, faço-lhe logo duas polcas; a outra servirá para quando subirem os liberais.


Foi a única pilhéria que disse em toda a vida, e era tempo, porque expirou na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens e mal consigo mesmo.

ALIENISTA


Simão Bacamarte é o protagonista, médico conceituado em Portugal e na Espanha, decide enveredar-se pelo campo da psiquiatria e inicia um estudo sobre a loucura e seus graus, classificando-os.


 Funda a Casa Verde, um hospício na vila de Itaguaí e abastece-o de cobais humanas. 

Passa a internar todas as pessoas da cidade que ele julgue loucas; o vaidoso, o bajulador, a supersticiosa, a indecisa etc.


 Costa, rapaz pródigo que dissipou seus bens em empréstimos infelizes, foi preso por mentecapto. A tia de Costa que intercedeu pelo sobrinho também foi trancafiada.


O mesmo acontece com o poeta Martim Brito, amante das metáforas, internado por que se referiu ao Marquês de Pombal como o dragão aspérrimo do Nada. Nem D. Evarista, esposa do Alienista escapou: indecisa entre ir a uma festa com o colar de granada ou o de safira.

O boticário,os inocentes aficcionados em enigmas e charadas, todos eram loucos.


 No começo a vila de Itaguaí aplaudiu a atuação do Alienista, mas os exageros de Simão Bacamarte ocasionaram um motim popular, a rebelião das cnajicas, liderados pelo ambicioso barbeiro Porfírio.


 Porfírio acaba vitorioso mas em seguida compreende a necessidade da Casa Verde e alia-se a Simão Bacamarte.

 Há uma intervenção militar e os revoltosos são trancafiados no hospício e o alienista recupera seu prestígio.

 Entretanto Simão Bacamarte chega á conclusão de que quatro quintos da população internada eram casos a repensar.

Inverte o critério de reclusão psiquiátrico e recolhe a minoria: os simples, os leais, os desprendidos e os sinceros.

O alienista contudo, imbuído de seu rigor científico percebe que os germes do desequilíbrio prosperam porque já estavam latentes em todos. 

Analisando bem, Bacamarte verifica que ele próprio é o único sadio e reto. Por isso o sábio internou-se no casarão da Casa Verde, onde morreu dezessete meses depois, apesar do boato de que ele seria o único louco de Itaguaí, recebeu honras póstumas.



A CARTOMANTE
A cartomante é a história de Vilela, Camilo e Rita envolvidos em um triângulo amoroso.


 A história começa numa Sexta-feira de novembro de 1869 com um dialogo entre Camilo e Rita.


 Camilo nega-se veementemente a acreditar na cartomante e sempre desaconselha Rita de maneira jocosa.


A cartomante está caracterizada neste conto como uma charlatã, destas que falam tudo o que serve para todo mundo.

 É um personagem sinistro, que apesar não ter nem o seu nome revelado, destaca-se como um personagem que ludibria os personagens principais.

Rita crê que a cartomante pode resolver todos os seus problemas e angústias. 

Camilo já no fim do conto, quando está prestes a ter desmascarado seu caso com Rita, no ápice de seu desespero, recorre a esta mesma cartomante, que por sua vez o ilude da mesma forma como ilude todos os seus clientes, inclusive Rita.


 A mulher usa de frases de efeito e metáforas a fim de parecer sábia e dona do destino de Camilo, este que sai de lá confiante em suas palavras e ao chegar no apartamento de Vilela encontra Rita morta e é morto a queima roupa pelo amigo de infância, que já está sabendo da traição da esposa e o esperava de arma em punho.

O ESPELHO

“- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro... A alma exterior pode ser um espírito, um fluído, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação”
Machado de Assis

Um grupo de senhores, por várias noites, reuniu-se para discutir sobre os assuntos de alta transcendência – coisas metafísicas. No grupo, um dos participantes se destacava pelo silêncio. Numa das noites, incitado por um dos participantes, o casmurro usou a palavra – narraria um fato de sua vida e não consentia réplica. Não se tratava de opinião ou conjectura, era apenas uma demonstração da matéria debatida.


“Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...” A afirmação causa perplexidade, mas o narrador não se intimida e reitera que existem duas almas: uma exterior, outra, interior... A alma exterior não é sempre a mesma, modifica-se com as circunstâncias.
As duas juntas, metafisicamente, se completam, quem perde sua alma exterior vive incompletamente, e há caso de pessoas que perdem a existência inteira.

O homem continua relatando sua experiência de quando tinha 25 anos e fora nomeado alferes da Guarda Nacional. Tornou-se o centro de atenção de sua humilde família e passou a ser identificado como o Sr. Alferes.

Não tardou e uma tia que morava a algumas léguas, convidou-o a passar alguns dias em sua casa, com a farda naturalmente. Os dias passavam nas formalidades próprias de uma autoridade. A grande relíquia da casa, um grande espelho, fora colocado em seu quarto como sinal de admiração e orgulho.

“- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se, mas não tardou que a primeira cedesse à outra; ficou-me uma parte íntima de humanidade.
Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente, a outra dispersou-se no ar e no passado.”

Ocorreu o imprevisto e a tia teve que se ausentar por alguns dias. Restaram os escravos que utilizaram suas cortesias e louvores “Nhô Alferes é muito bonito, nhô alferes há de ser coronel”. Um concerto de louvores escondia suas reais intenções.
 Na manhã seguinte, todos haviam fugido.
O homem, após alguns dias, no silêncio vasto tornara-se um boneco que mal comia, seu corpo era dominado de dor ou cansaço, nada mais...
Durante muitos dias não se olhou no espelho num impulso inconsciente, mas findo oito dias olhou-se no espelho com o fim de encontrar-se dois, mas o que viu foi uma figura vaga, dispersa, mutilada..
. Sabia que pelas leis físicas aquilo não era possível, mas sua sensação era real – o espelho refletia uma decomposição de contornos. Em desespero, em meio a feições fragmentadas, teve a idéia de vestir a farda de alferes e tornou a mirar-se. O homem, alferes, enfim, havia encontrado sua alma exterior.

“Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la recolhida no espelho.”

Assim, Machado de Assis esboçou uma nova teoria da alma humana, espelhando o homem em sua enorme ambigüidade de ser para si e ser para o outro. Até que ponto as imagens convergem?
O que antecede o objeto ou a reflexão? O espelho pode ser o outro a recriar a alma exterior?

Definir-se no que espelha do mundo, sentir-se importante ao assumir um papel representativo na sociedade. Tornara-se um alferes e isto o identificava mais do que seu nome próprio, do que sua intimidade sem projeção. Ele precisava da sombra sob seus pés para sentir-se imponente no mundo, precisava da palavra alferes repetida com orgulho para incorporar sua autoridade.

Sozinho no silêncio, perde-se na “sombra da sombra”, num eu fragmentado de um espelho que não conseguia projetar a alma exterior com a simples projeção do corpo.

Era necessário o uso da farda para manter viva a alma que dominara sua alma interior. Vestia-se num ritual e gesticulava diante do espelho todos os dias e pode atravessar mais seis dias sem perceber...

O signo do espelho, tantas vezes objeto de especulação, ganha aqui o papel de destaque – o encontro do homem com sua alma exterior. As reflexões de Lacan , demonstram que o espelho é um fenômeno limiar, que demarca as fronteiras entre o imaginário e o simbólico. A criança até se perceber no espelho é um ser fragmentado. É o que percebe ser.
Para Lacan são três as fases: a criança compreende o espelho como uma realidade; depois como uma imagem, e até que numa terceira fase percebe que a imagem refletida é sua.

A primeira consciência da completa individualidade vem do exterior. A criança reconstrói seus fragmentos num corpo externo. Será que serão sempre duas existências a coabitarem um corpo e uma imagem? Qual a alma que transcende a relação especular e ganha corpo e espaço num eu absoluto?

Como disse Machado de Assis, são muitas as almas exteriores. A família, as realizações profissionais, o contato com os outros. Muitos objetos espelham nosso eu, encontramo-nos muitas vezes nas atitudes alheias, nos valorizamos nos elogios que ouvimos, nos sentimos vivos na percepção dos outros. São inúmeros os espelhos, ou almas exteriores, e um único e definitivo sujeito.

Não deixemos que as coisas no mundo, seja ela qual for, ofusque e aniquile nossa alma interior. Aproveitando o esboço de nosso grande escritor, tentemos elaborar um novo enredo em que o espelho se interioriza e possamos nos reconhecer no vasto mundo.

A crônica finaliza com um trecho do brilhante ensaio “Sobre os espelhos” de Umberto Eco: “Em todo caso, por mais fortes que sejam as ilusões, as ambigüidades, as confusões “sobre o limiar”, a tentação de homologar imagens especulares e registros, basta reproduzir-se um espelho numa fotografia, num enquadramento cinematográfico ou televisivo, num quadro. Essas imagens de imagens especulares não funcionam como imagens especulares.



Do espelho não surge o registro ou ícone que não seja um outro espelho.

 O espelho, no mundo dos signos, transforma-se no fantasma de si mesmo, caricatura, escárnio lembrança.” Se você quiser encontrar o seu pior inimigo ou o seu melhor amigo, é só olhar-se no espelho todos os dias.

As pessoas  costumam culpar os outros pelo que acontece com elas. É difícil encontrar alguém que assuma os seus próprios erros e defeitos. 

A maioria responsabiliza o chefe, o diretor, a mulher, o marido, a mãe , o pai, o irmão, o vizinho, o governo pela sua infelicidade. 

Enquanto não assumimos a responsabilidade por nossas ações, dificilmente alcançaremos progresso, desenvolvimento pessoal, crescimento na vida e a felicidade que todos perseguem, mas poucos, muito poucos ,conseguem atingir. 

E o motivo principal é que nós, por comodismo, procuramos nas pessoas e nos acontecimentos a razão dos problemas que impedem a nossa felicidade.

A CAUSA SECRETA


Causa Secreta é dos melhores contos da antologia de Várias Histórias. 

Em 3ª pessoa, o narrador onisciente constitui uma notável caracterização psicológica em que revela, ao fazer o estudo do personagem Fortunato, o ápice do prazer que é conseguido na contemplação da desgraça alheia.

 O motivo do conto é explicar o verdadeiro sentido do termo "sadismo". 

Conta a estória de dois homens que, após um salvar a vida do outro e passar-se algum tempo, tornam-se sócios. 

Mas pouco a pouco um deles vai demonstrando tendências sádicas, torturando animais, fato que atordoa a esposa. 

Quando ela morre, Fortunato, o sádico, presencia o amigo beijar a testa da mulher e derreter-se em choro, saboreando o momento de dor do amigo que lhe traía.

Um conto naturalista. 


Ainda que a ambientação seja burguesa, os personagens parecem ratos de laboratório, uma analogia bastante explorada pelo autor na cena mais forte do texto em que o personagem Fortunato tortura um rato, cortando-lhe as patas lentamente, revelando todo o sadismo (patologia) que até então estivera oculto de todos, inclusive dos leitores.

Na análise do conto "A Causa Secreta", mostra que na perfeita normalidade social de Fortunato - um senhor rico, casado e de meia-idade, que demonstra interesse pelo sofrimento, socorrendo feridos e velando doentes - reside, na verdade, um sádico, que transformou a mulher e o amigo num par amoroso inibido pelo escrúpulo. 


Este escrúpulo, que gera o sofrimento do par, é a causa secreta do prazer de Fortunato e de sua atitude de manipulação de que o rato, no conto, é símbolo (Garcia, o protagonista, estaca perante a representação do horror. 

Fascinado perante o gesto frio de Fortunato, Garcia não faz sequer um gesto. 

Apenas contempla o sócio torturar lentamente um rato. Cortes meticulosos, pata a pata, precediam a queima do mesmo no fogo. 

O lento ritual prolongava o prazer. O narrador não subsume a cena em poucas palavras, mostrando-a por inteiro ao leitor).

Assim, de um narrador onisciente, nos principia o relato de um triângulo amoroso, trama comum a diversas ficções machadianas, enriquecida aqui de uma novidade incomum nas demais, o sadismo.

Em A Causa Secreta, Machado faz talvez um de seus melhores "desenhos psicológicos". Revela-nos a personalidade de uma pessoa, capaz de realizar "boas ações" desde que estas lhe permitam o exercício de seu prazer.

Meus queridos uma maravilhosa leitura com os contos de Machado de Assis..
com carinho Prof Dr Master Reikiana

Aldry Suzuki

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