Autora: Aldry Suzuki
3.4.3 - Alterações dos limites
Ora, só esta ausência de projeto já
seria suficiente para provocar um grande estrago na sala de aula e na escola,
afinal “para que me comportar se não vejo sentido naquilo que estou fazendo??”.
Mas a este fator vem-se acrescentar outros dois, um de ordem circunstancial e
outro estrutural. De um lado, tudo isto está acontecendo justamente no momento
em que os professores estão submetidos às mais desfavoráveis condições de
trabalho dos últimos tempos: má formação, salários miseráveis, número excessivo
de alunos em sala, falta de material didático apropriado, falta de espaço de
trabalho coletivo constante na escola etc. De outro lado, temos a crise dos
próprios limites, alimentada pela necessidade de um mercado baseado na
exacerbação do consumo.
Nesta perspectiva, a quebra de
limites é fundamental para poder alimentar a lógica do consumismo, e o grande
alvo desta guerra é a criança, elo mais fraco da corrente. Basta ver o número
de propagandas dirigidas às crianças ou mesmo usando crianças como chamariz,
pois se descobriu que, além de seu consumo direto, a criança hoje tem
forte influência no consumo da família,
chegando a decidir desde o tipo de eletrodoméstico até a marca de carro a ser
comprado. Quebrar limites – especialmente da criança – tornou-se, pois,
fundamental. É um processo social de infantilização, onde é preciso satisfazer
rapidamente os desejos sob o fantasma da frustração e até mesmo do “trauma”. O
importante é viver bem o aqui e o agora
– vejam a relação com a crise dos objetivos -, desfrutar, fruir. Na casa ao
lado de minha mãe no Paraná , uma criança (alguns anos atrás, hoje ela já e
casa e a menina dela de 15 anos já e mãe),com
uma série de atos de protesto, no
caso que os pais se recusaram a leva-la
ao shopping durante as férias (ex. bater o pé, não comer, ligar para a
avó, etc, manha pura ) e ainda presenciamos este fatos até hoje...Mas fico
perplexa com alguns pais, chegam a esboçar justificativa diante da tirania dos
filhos: “Veja como meu filhinho já tem personalidade”...
Cremos que está suficientemente
claro como família também é vítima deste
processo: de centro de convivência e espaço de formação básica do ser humano,
transformou-se, na ótica da classe dirigente, em unidade de restabelecimento de
força de trabalho e de consumo, impelidos, por um lado, para o trabalho em
função da queda progressiva dos salários e, por outro, massacrados pelos meios
de comunicação, os pais acabam caindo no círculo vicioso: desejo de consumo –
busca de recursos – mais trabalho – menos tempo de convivência com filhos –
culpa – menos limites – liberação para consumo – mais necessidades de recursos
...
Bem, a partir destas ligeiras
pinceladas, podemos ver o tamanho do problema cujos reflexos estamos
enfrentando na escola.
3.4.4 –
Obstáculos epistemológicos
Quando analisamos a posição dos
educadores em relação ao problema
disciplinar, encontramos certas representações mentais, incorporadas
mais ou menos fortemente, mais ou menos conscientemente, que podem funcionar
como “obstáculos epistemológicos” e, se não forem levantas em conta, dificultar
em muito a construção de novas perspectivas de ação dos educadores. Vamos citar
três que nos parecem muito presentes atualmente.
3.4.5 –
Espera da “fada madrinha”
A situação anda tão difícil que
muitos professores andam sonhando com “fada madrinha, porções mágicas”. Isto
chega até ser expresso em tom de brincadeira nos encontros, mas com tal
freqüência que não pode ser considerada apenas como caso isolado ou
brincadeira..
O que significaria uma solução
mágica?? Basicamente, tratar-se-ia de algo feito pelo outro e que daria
resultado imediato. Ou seja, a questão da “porção infalível” é problemática por
colocar a solução fora do sujeito e por negar o caráter processual de mudança
da realidade.
De certa forma, podemos entender
esta busca de solução mágica também como reflexo de um não conseguir aceitar a
situação tal como se coloca hoje, Para a maioria dos professores está realmente
muito difícil assimilar a mudança que houve no seu status, nas suas
condições de trabalho;neste sentido, a “mágica” representa certa nostalgia, uma negação pura e simples
da realidade.
3.4.6 –
Planejamento das alternativas
Na busca de superação dos problemas,
muitas vezes as alternativas encontradas têm uma forte carga idealista, o que
significa dizer que não levam em conta um conjunto de determinantes da
realidade concreta. É claro que toda proposta que vise à superação tem uma
carga de negação em relação à realidade atual – caso contrário, não seria
superadora. A distorção do idealismo é exacerbar as possibilidades em
detrimento dos limites. Assim, por exemplo, afirmar-se que, para evitar
indisciplina, a aula do professor deve ser interessante.
Até aí estamos de acordo; a questão
surge quando vamos aprofundar tal proposta
e vemos que se espera que o professor sozinho interesse a todos os
alunos, o tempo todo . Ora, isto seria o ideal; contudo, sabemos que
dificilmente ocorrem situações assim no cotidiano da escola. Se a proposta
fosse colocada em termos de se criar um clima hegemônico – e não de totalidade
– de interesse, com a participação também dos alunos e não só do professor -, considerando ainda
que o estudo é um trabalho, o que demanda esforço, concentração – e não só mera
fruição -, estaria, nos parece, mais de acordo com a realidade, sem perder seu
caráter superador.
Outro exemplo: a questão da
resolução dos problemas da escola através da tecnologia. Há algum tempo, saiu
uma reportagem na revista Veja sobre questões de disciplina, onde, ao término,
ficava-se com a nítida impressão de que
o computador era a grande saída. Alguns críticos chegaram mesmo a levantar a
hipótese de a reportagem ter sido “encomendada” pelas empresas de informática,
tendo em vista a intenção do Ministério da Educação de equipar as escolas com
computadores. No entanto, algum tempo depois, a própria revista trouxe outra
reportagem onde se colocava que as coisas não eram tão simples assim, pois
muitas escolas adotaram o computador e continuavam com os mesmos problemas. É
claro, pois a saída não é o computador em si; não adianta colocar a tecnologia
se não vier ligada a um projeto político-pedagógico, que dará o sentido e a
direção do uso da informática na escola. Devemos estar muito atentos,
especialmente na Escola Pública, pois, em função de sua carência muito grande
em termos materiais, podemos ficar depositando nossa esperança em algumas
soluções mágicas, como esta do computador: “Ah, se tivéssemos computador”...
Como sabemos que não é bem assim?? Basta ver o caso das escolas particulares
que adotaram computador, cujos alunos continuam entediados do mesmo jeito; eles
têm quinze minutos de êxtase com o novo CD-ROM; passado o efeito da novidade,
cai-se desinteresse da mesma forma. Isto porque a “novidade” não vem articulada
a um novo projeto, a novas relações pedagógicas. Não estamos absolutamente
dizendo que o computador não é um bom
recurso; muito pelo contrário. O que questionamos é a visão ingênua de colocar
a solução dos problemas educativos na máquina.
3.4.7 –
Sensação de “Não –Poder”
A sensação de não-poder talvez seja
hoje um dos maiores obstáculos epistemológicos a serem enfrentados. É impressionante
como o professor acabou assimilando a idéia de que não tem forças, de que não
pode, de que a solução dos problemas está fora dele.
Muitas vezes, sente-se desgastado,
destruído, traído, usado, acusado, desprezado, humilhado, explorado. Neste
contexto, colocar a “culpa” fora dele pode ser a saída inconsciente de
autoproteção, não por ser relapso, mas sim porque no fundo acha que não pode,
não tem força para mudar. Quando
questionado sobre os problemas, vai logo apontando: “é a família”, “é o
sistema”. Ao fazer isto, esvazia sua competência profissional e
existencial;perde o senso crítico, pois não consegue se situar diante do real;
perde a autoridade, já que não é
responsável por nada. Está marcado pelo impossível, pelo não-poder.
Freqüentemente, o colocado por ele
como condição para iniciar a caminhada é
justamente o resultado de um processo de lutas e conquistas.
Nas reuniões pedagógicas, nos
encontros de formação, quando perguntamos aos professores sobre qual segmento
mais próximo poderiam atuar, é muito comum ouvirmos: o aluno!! Isto pode
revelar até uma certa esquizofrenia, por não conseguir se perceber, por perder
o contato consigo mesmo. Vejam o ponto a que chegamos: a anulação do poder do
professor para enfrentar a realidade.
A situação em que o professor fica é
profundamente ambígua: de um lado, está justificado, pois”não é com ele”, mas ,
de outro, está absolutamente impotente...
De certa forma, este sentimento de
impotência é aprendido no cotidiano social, onde, num caldo cultural de colonialismo
e paternalismo, parece que tudo só pode ser resolvido pelos “grandes”; o
cidadão comum nada pode. O professor diante do problema disciplinar, achando
que não pode fazer nada, parte para
outra atitude extrema: se livrar, expulsar o aluno ( algo semelhante à
pena de morte no contexto social mais amplo).
Assume-se uma impotência na dimensão
tanto cognitiva – incapacidade de fazer aprender o aluno que apresenta
dificuldade -, quando social – incapacidade de alterar a condição de origem do
aluno pobre.
Este não-poder pode ser real (fruto
de determinantes objetivos colocados historicamente) ou imaginário(fruto de
representações, mitos, preconceitos). É claro que ambos nos preocupam; porém,
enquanto o primeiro é pauta de luta, o último acaba negando as potencialidades
transformadoras dos sujeitos.
O enfrentamento deste obstáculo
vai-nos remeter à questão: é possível transformar a realidade? Como??
3.4.8 –
Resgate do Professor
A partir do exposto até aqui, fica
claro que um dos maiores desafios é o resgate do professor como sujeito de
transformação: acreditar que pode, que tem um papel a desempenhar muito
importante, embora limitado. Acreditar na possibilidade de mudança do outro, de
si e da realidade.
3.4.9 – O que
fizeram conosco
Já de algumas décadas vem ocorrendo
um processo de imbecilização, de destruição do professor, que chegou até a
atingir profundamente seu autoconceito, sua auto-imagem, sua auto-estima. Isto
é uma perversidade em termos de País. As classes dominantes tiram vantagens desta
situação em termos imediatos – um povo sem educação e cultura é mais facilmente
manipulado – mas é um suicídio coletivo a longo prazo. Estamos percebendo
alguns sinais claros disto: a questão da violência está emergindo com tanta
força, que assusta a todos, até os próprios dominantes. Por trás deste fato, há
também,com certeza, um trabalho educacional malfeito, seja no sentido da
negação da possibilidade do processo de humanização dos sujeitos, seja no
sentido da anulação do caráter transformador do conhecimento.
De onde vem o drama do professor? Em
parte, da percepção de que está incapacitado para dar conta de sua tarefa: o
mundo mudou, o aluno mudou, mudou a relação escola-sociedade e ele continua o
mesmo... o que lhe foi ensinado?? Transmitir o conteúdo, cumprir o programa,
controlar o comportamento do aluno através da nota. Hoje, as exigências são
outras!! O que dizer de um profissional da Educação que, muitas vezes, não sabe
como se dá o conhecimento, não domina o próprio sentido do que ensina, em alguns
casos mais extremos nem ao menos domina o próprio sentido do que ensina, em alguns casos mais
extremos nem ao menos domina o próprio conteúdo que ministra ou, quando domina,
ensina baseado na mera transmissão? Isto é doído, sabemos; todavia, com certeza,
não será “tampado o sol com a peneira” – querendo esconder nossas falhas e
deficiências – que iremos resolver os problemas. Insistimos que não se trata de
um julgamento moral, com se o professor fizesse isto porque quer, porque
escolheu conscientemente ser um mau profissional. Ele é vitima também de uma lógica desumana e
excludente. Mesmo quem saiu dos melhores centros de formação sabe que tem um
série defasagem na sua capacitação, até porque a educação escolar, como vimos ,
é uma atividade de per si extremamente complexa, ainda mais a ser exercida nos
dias de hoje.
Quando olhamos a escola brasileira,
o que está produzindo?? Fracasso em cima de fracasso: basta ver os
elevadíssimos índices de reprovação e evasão escolar, o baixíssimo grau de
aprendizagem dos alunos que tiveram “sucesso” revelado nas testagens nacionais
e internacionais de conhecimentos mínimos. Esta sensação de fracasso começa nos
próprios professores, por não terem condições mínimas de trabalho. A negação da
escola começa pela negação do próprio professor. E isto não é á toa...
Precisamos reconhecer sua delicada situação; de certa forma, nunca se pediu
tanto ao professor como se pede hoje e, ao mesmo tempo, nunca se deu tão pouco.
É necessário superar também este
processo de infantilização: a falta de autonomia do professor. Amiúde, decisões
superiores são simplesmente comunicadas aos professores, que assumem algo em
que não vêem o menor sentido. Se o professor não começar a exercitar um pouco a
sua dignidade, a sua cidadania, ter coragem de perguntar: por quê? Pra quê?
Como?; se o professor não reagir, vai continuar imbecilizando-se. Muitos livros
didáticos estão ai para isto também: quer coisa mais ofensiva que um livro do
professor com resposta? É um profundo desrespeito...
3.4.10 – o
que vamos fazer com o que fizeram conosco
A grande questão que,a nosso ver,
precisa ser enfrentada com urgência e verdade é: muito bem, estamos nos buraco.
Como
vamos sair desta??
|
Enquanto não tivermos coragem de enfrentar esta questão,
superando os escapismos e os sonhos de eventuais “salvadores da pátria”, não
veremos muita possibilidade de mudança.
Para mudar a realidade, é preciso
fazer uma opção muita clara; no entanto, para não mudar não é preciso fazer
opção, uma vez que há uma lógica montada no sentido da reprodução. É como o
sujeito que vai até ao meio do rio com uma bóia e diz: “Agora vou ser neutro:
vou ficar parado; não vou nadar nem em direção à nascente do rio, nem em
direção à sua foz”. Pergunta: embora se tenha posicionado pela neutralidade,
ficou parado?? Em relação ao rio, sim, porém em relação à margem, não;
objetivamente está descendo, embora não tenha optado conscientemente por
isso... Há uma lógica em andamento, não podemos ser ingênuos.
Poderíamos lembrar aqui aquela forte
colocação de SARTRE: “ O importante não é tanto o que fizeram comigo,mas o
que faço com o que fizeram comigo”.
É necessário resgatar o professor
como sujeito de transformação. Não vai ser mantendo-nos no estágio de
heteronomia, onde não podemos pensar, onde tudo vem pronto, que nos estaremos
ajudando. Faz-se necessário sair um pouco do “piloto automático”, daquele
mecanicismo, formalismo, que nos colocaram e começar a exercer uma das funções
básicas de qualquer pessoa, de qualquer cidadão, contudo muito importante para
o professor, que é a função da reflexão. Refletir, buscar, comprometer-se.
Poderíamos lembrar aqui as reflexões
de FOUCAULT sobre a questão do poder: onde está o poder? Será apenas nos
dirigentes, na mídia? Ou na verdade, embora tenhamos focos fortes de poder, ele
tem uma capilaridade, está no dia-a-dia, nos vários agentes sociais? É preciso
resgatar e redirecionar estes micropoderes locais, tendo em vista um projeto
novo, denunciando e lutando contra o poder que se exerce como abuso:
“(...) todos
aqueles que o reconhecem como intolerável, podem começar a luta onde se
encontram e a partir de sua atividade (ou passividade) própria”. (FOUCAULT,
1981,p.77)
Vamos lutar onde temos
possibilidades concretas, ao mesmo tempo em que buscamos a ampliação destas
possibilidades. Seria importante lembrar que o “sistema” não funciona sem a
mediação de agentes concretos, dos quais nós fazemos parte, e que, por via de
conseqüência, temos um poder em mãos, em princípio limitado, mas real, e com
possibilidade de ser ampliado de acordo com nossa capacidade de articulação.
Precisamos criar uma rede ética de resistência a este processo de brutalização
social que está instalado em nosso país.
Acreditamos profundamente no
professor; hoje ele pode ter um papel revolucionário (ainda que correndo o
risco, ao afirmamos isto, de sermos chamados de “jurássicos”, de utópicos ).
Esta onda neoliberal, que está ai quebrando todas as esperanças, tem muitos
interesses não explicitados. O professor lida sim com a esperança, com a utopia; isto faz parte da
essência do seu próprio trabalho.
Prof Dr Master Reikiana Aldry Suzuki
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